Política da carne: A razão do perverso de Mário Herrero Valeiro.
Não é fácil perceber as cousas pelo
meio, não. Num ensaio ainda somos capazes de digerir algo assumindo as
instruções da retórica: uma introdução para captar a benevolência alheia,
ajustada por vários argumentos na defesa da postura própria, antes de
aproximar-nos dum desenlace mais ou menos contundente. Mas a poesia rompe as
cápsulas. Talvez por isso Mário Herrero aborde A razão
do perverso, a sua última entrega, completamente fora de pautas
clássicas, a instalar-se no meio do assunto, como se tentasse fazer troça de
géneros e de recomendações. O seu é um poemário rasgado de cima para baixo, um
hieroglífico para alguém com vontades de desentranhar a dupla linguagem através
de algumas dicas – presentes já na sua obra prévia –: a tensão contra o poder, a
derrota após um tempo de decadências onde o combate poderia ter corrido doutro
modo, a insatisfação que produz um sistema (literário e nem só) com os seus
pénis, as suas normas sagradas, a sua crítica diminuta, e os seus Octávios Paz.
Quando uma rês está rasgada de cima para baixo, estremece. Nunca estará mais
despida e, contudo, a exposição despudorada do seu interior torna-a algo
diferente dum corpo: a sua condição de carne dá nas vistas. Algo semelhante tem
de acontecer quando o rasgado é um poemário. “Nunca comerás terra” – Não hás de
humilhar-te. “Nunca beberás leite” – Não te nutras do que te ofereçam. “Nunca
escreverás sobre o sexo do país” – Isso especialmente: seria material
pornográfico, destrutivo. Eis as leis. E a estratégia para dar cabo delas é
deliciar-se num ato sexual feroz, contra a terra e contra o leite; um ato
destinado a “quebrar para sempre as inércias do país”. Herrero dixit. Mas, já
agora, isso é passado porque o animal está morto; é carne. Portanto, o seu
potencial erótico é apenas uma ilusão.
O poeta apresenta-se díscolo, descrido,
dissidente. Poeta dos três dês, então. Desobediência é, com efeito, ofício de
poetas. E lá foi o quarto D, apesar de desobediência não ser boa receita para
vender livros, ou talvez precisamente por isso. Um bocado de desobediência
poderia ser do gosto da crítica, que se apresta a acariciar poetas
mal-comportados, sempre que se mantiverem nos limites do permitido. Poetas sociais
têm bastante com mencionar os esfomeados da terra para se abrirem um oco,
embora os seus versos não alimentem ninguém. Versos carecem desse poder.
Não multiplicam o pão, mas sim podem colocar os seus autores bem arrumados nas
montras das livrarias. Porém, A razão do perverso nunca
será chamada de poesia social, mesmo se estamos perante um discurso lacerado de
feridas sociais. Nem social, nem intimista, apesar de percorrer o território
íntimo do sexo. Também não será qualificada pela sua vontade de estilo, como é
habitual no tipo de poesia que condensa a sua potência nos jogos de palavras,
tão suculenta nos prémios literários, e isso ainda que o autor lute por cada
palavra. Magistralmente. E com um desespero invulgar.
A razão do perverso recusa todas as etiquetas. Isso pode até ser positivo – etiquetas
constringem – sempre que não fique, em troca, sem qualificativos perante o
público e desassistido um livro original, impecável na construção, formalmente
medido ao milímetro, que traça uma cartografia detalhada do ato de escrever cá
e agora. A arte tem obrigação de recusar-se a etiquetas; sempre que não seja
produzida num país com tendências suicidas.
O pior que poderia passar-se seria que
fosse apenas mencionado como o vencedor do X Prémio de Poesia Erótica Ilhas
Sisargas. E não porque o tal prémio, mantido pela teimosia do ativismo,
desmereça ninguém. Ao contrário; tem o imenso valor de tornar visível um género
sempre em horas baixas e, aliás, é um dos escassos prémios galegos livres do
Apartheid ortográfico. Mas A razão do perverso dificilmente
pode acomodar-se na etiqueta de literatura erótica. Voltaremos nisso. Porque,
com certeza, a sua leitura desorientaria quem procurasse nele um texto
“quente”, sem mais aditivos – isso no suposto de existirem os tais textos
eróticos sem outras pretensões.
O autor joga a exibir algo mais profundo
do que a pele; a carne. Ou simplesmente será que a pele tem diversas camadas.
Pode tratar-se da suavíssima pele do sexo dessas poetas-amantes que aparecem
evocadas em cenas selvagens ou daquela mais curtida doutras partes do corpo. Em
qualquer caso, é simples envoltório, onde falta o essencial, o que está dentro.
Como a pele é fronteira subtil – a primeira fronteira, fácil de turbar e de
penetrar no jogo erótico – a maneira de trespassá-la faz parte de toda ars amandi. Mas o poeta não se conforma com isso: evoca
o erotismo com modos malandros, escandaliza. Lá é que pode começar a soltar as
fúrias. Porque este livro, por muito que fosse felizmente premiado no Ilhas
Sisargas, é tudo menos erótico. E a julgar por entregas anteriores, como A outra voz de Verónica Martínez Delgado e Alberto
Momán, os júris do Ilhas Sisargas entendem o erótico duma maneira pouco
convencional, o qual também deve ser celebrado.
Não convocam precisamente para o desejo
os muitos “orgasmos simulados com a face falsa de Lisa Ann”, nem que importe
pouco a intensidade do prazer. A libido chega da contradição, duma ela, “tão
branca e estática”, que mal pode ser imaginada “com as suas coxas a ressumarem
humidade”; da contradição entre o real e o sonhado: “e em nenhum corpo encontro
/ o que sonhei do teu corpo, / em nenhum quarto / a casa que desejei, / em
nenhuma nação, o teu sexo”. Também da sensação da fugacidade do tempo: “Porque
já nunca serei / o fauno do teu jardim”. Poderíamos suspeitar que ela, tão
branca e estática, é a língua, se não fosse que o poeta quis começar in media res, quer dizer, que se resiste a ver
expostos os seus símbolos. Mas é a ferocidade que se invoca, de maneira que as
carícias dessa amante constroem projetos de livros que nunca chegaram a ser. As
imagens mais fortes, com masturbações, cuecas e cricas, servem para o autor reconduzir
a nossa sede de sensualidade. Deslocam essa sensualidade para outro sítio.
Porque no sexo sempre se está a decidir outra cousa. Talvez, a mentira atroz de
manter a esperança – como um casal de muitos anos que perdeu a fruição. Talvez,
as mentiras não menos atrozes em que vivemos, a nadar em sistemas – também
literários – banalizados, com o seus círculos e os seus livros que ninguém lê.
Talvez seja apenas que o passado, insistentemente mencionado, onde ainda havia
voz e as palavras tinham sentido, avisa da dificuldade do ato sexual, que não
sabe de tempos verbais e que se realiza num agora fugaz e, curiosamente,
permanente. “Não me custa não ser / não ter obra, não ler […] Não me custa não
estar, / não ter terra, / não te amar”. Os amantes desafogam-se entre as
vísceras das crianças não nascidas quando já largaram tudo de si. Ou quando
tudo se foi embora. A primeira a marchar, por sinal, foi a língua. E não será
cá a língua o músculo erótico por excelência. Não.
O autor pratica um jogo de ocultações
para aplicar-se à técnica freudiana de sermos na realidade o que mais
precisamente ocultamos e tenta desenvolver uma política da carne, assim a
chama, convencido de que quando tudo vale, a única honra é não estar; toda uma
declaração de intenções. E uma lição de vida, com todo o seu pathos. E a sua eloquência.
Texto denso, envolvido em referências
literárias e filosóficas, num jogo de citações que definem um cenário mal
ventilado, onde se move uma voz desesperançada e lúcida. Leitura múltipla, do
corpo ao político, da escrita à paixão de resistir “numa estirpe de
desterrados”, onde a voz masculina pretende falar despudoradamente de sexo –
mas não quer ou não pode abandonar uma inusitada ternura para a condição
humana, um tom por vezes humorístico, ciente das limitações do prazer e,
contudo, da sua força. A tensão sexual paira entre o irreverente e a sua
inevitável condição de consolo. Para incomodar. Para inquietar. Para
debruçar-nos sobre a carne que está sob tantas camadas de pele suave e lasciva.
E a poesia torna-se um órgão de conhecimento, uma espetacular anatomia do que
se passa por dentro deste corpo social minúsculo que transitamos, onde, se for
possível, um francoatirador autêntico – quer dizer, um poeta – largaria tudo
para foder.
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