A Islândia que levamos dentro. Uma leitura dos Cadernos da Islândia de Paulo Ricardo Moreira
Nunca
estive na Islândia. Para mim, evoca apenas uma silhueta recortada no norte do Atlântico,
quase fora de foco no mapa que habitualmente contemplo. Talvez seja por isso,
por nunca ter lá estado, que o seu nome me convida a brincar: a terra isolada,
a iso-lândia. Quando caiu nas minhas mãos o último livro do poeta
português Paulo Ricardo Moreira, assim que li o título, Cadernos da Islândia,
pensei que se tratava de mais um livro de viagens. Se não fosse que tive a
fortuna de conhecer o autor antes de ler a obra, até poderia ser que nunca a tivesse
lido. Habituo a acautelar-me contra a ideia de viagem. Decidi fazer assim. É
complicado explicar as causas desta desconfiança numa época de barulho como a
que vivemos. Nunca as viagens foram tantas, tão banais: o perfil de turista
toma posse de nós e percorremos o planeta às pressas a nos fotografar diante
de um monumento ou numa paisagem idílica só para estremecer as amizades, sem
reconhecermos a imensa solidão que a viagem exige. Pisamos as escadas dos
hotéis, os corredores dos aeroportos com alegria infinita para logo a seguir
subir aos miradouros, comer em restaurantes na moda, aguentar as filas para
visitar um museu que nem consideraríamos na nossa própria cidade. Afinal, regressamos
à casa tão estúpidos como saíramos. Não professo a religião do turismo nem
acredito em que viajar me torne sábia. Digamos que sou uma ateia da indústria
da viagem. Porém, os Cadernos da Islândia vieram surpreender-me: nem
eram um guia para percorrer a ilha, nem um pretexto para o Paulo Moreira nos
deslumbrar com o seu cosmopolitismo; eram um diário poético, um regresso ao
essencial, um passeio pela geografia interna do autor.
Publicado
em 2019 pela editora Seda, o poemário parte duma experiência pessoal: a estadia
do autor naquele país nórdico por questões de trabalho. Isso já estabelece uma
distância com a literatura de viagens habitual, onde o escritor tenciona
resumir a visita superficial do turista ou, ainda pior, onde narra a
experiência burguesa como parte duma elite que folkloriza determinado povo. Edith
Wharton visitou a Galiza em 1927 e, embora o seu genuíno interesse, não pôde
contornar as exigências de um olhar anglo-saxão e retratou um país pobre e
atrasado. Nada disso aparece na obra do Paulo Moreira.
Quando,
doze anos atrás, a Islândia se fez um oco nos informativos pela sua maneira de reagir
perante umas circunstâncias económicas adversas com o sistema bancário à
falência, eu também, animal de livros, cai na tentação de ler ensaios
jornalísticos sobre a recuperação económica, sobre mulheres que presidem países
diminutos, sobre a espiritualidade da cultura nórdica e a imensa quantidade de
mães solteiras num país de liberdades e respeitos. Depois chegou às livrarias a
obra de Audur Ava Ólafsdóttir, que devorei, e soube da Hringvegur, a estrada circular que percorre
a ilha, dos campos de cascalho e lava, e fui captada pelo magnetismo
das montanhas e os glaciares: uma paisagem vulcânica que infunde reverência, que
comove. E ameaça. Paulo Moreira situa-se precisamente aí: na emoção duma terra
ignota. Não usa o olhar do turista, mas também não o do viajante fascinado
perante uma nova realidade que volta para contar a sua revelação de
privilegiado como um antropólogo entontecido pela oportunidade de viajar.
É
certo que os cadernos da Islândia nos oferecem referências (“O lago Myvatn,
pese embora extenso/, possui apenas quatro metros de profundidade máxima/e os
islandeses são felizes”, “as águas frias do Norte / beijam e envolvem / a areia
negra de Grenívik”, “Incrustada na margem do fiorde/ ladeada pelas montanhas
brancas,/ eis Akureyri, a capital do Norte” ), mas a voz que as apresenta
parece auto-controlada: as referências têm de estar para ser a Islândia e não
qualquer outro território, sem por isso se converterem num catálogo de nomes
exóticos. O autor consegue uma interessante distancia relativamente ao espaço.
Como Kavafis, parece certo de ter compreendido que todas as Ítacas são
idênticas, apenas um pretexto para fugir do aqui e do agora, apenas uma desculpa
para se deslocar dentro de si.
O
efeito desta introspeção percebe-se bem em O homem azul de Akureyri, onde
o poeta se detém ante um pequeno quadro da artista Iréne Jensen: “O quadro
ocupou, entre roupas,/ um espaço na mala / e repousa agora em Portugal./ O
solitário homem azul retratado na tela / regressou à Islândia e carrega uma
enorme carga interior / que fará o músculo da poesia robustecer./ Desde o
primeiro momento percebi: / Aquele homem azul era eu!”. Ou, igualmente, no
poema Todos os nomes, conclui: “E escrevo no peito em solidão/ todos os
nomes / que se revelam aos olhos / da própria neve que sou.”
Os
Cadernos da Islândia deliciam-se na passagem lenta do tempo, no ritmo
das estações numa terra extrema e dura, onde os pássaros emigram e a noite pode
ser infinita. Bebe da paisagem para a transcender: “Tudo isto no meio do nada”.
Lá estão os tópicos clássicos da poesia, como o beatus ille (“É preciso
saber fugir da urbe,/ abandonar as vilas e as cidades/ para fazer de nós a
metrópole/ ou então ser ilha dentro da turba) num canto constante à natureza, à
diversidade do planeta, da Sibéria à Patagónia, que nos oferece um lugar para a
meditação. O afastamento do lugar e do tempo revelam-se em Paulo Moreira um
procura do próprio ser; esse justamente era o título do seu primeiro poemário,
mais intimista e biográfico (Ser, 2016). Um ser que é construído,
dolorosamente, que luta contra a injustiça nalguns poemas explicitamente
políticos (assim Os autómatos de azul de Vestmannaeyjar, com o ritmo
proletário na fábrica de peixe ou Pergunto-me, a retratar as vidas
afundadas nas fossas abissais da dor e o desespero), mas que mantém um tom positivo,
convicto da força dos sentimentos, da energia que se renova cada vez que as
palavras nomeiam o mundo: “O tempo é palavra./ O passado é palavra./ O presente
é palavra. / O futuro é palavra./ O ar que respiras é palavra. / O chão que
pisas é palavra”
Nesta
entrega, Paulo Moreira transita pelo território universal da solidão e do
exílio. Como emigrante que era naquela ilha, poderia ter recorrido ao canto
épico, ao estilo do Whitman que se estremecia com os operários chegados ao
porto de New York, mas, a pegada ecologista própria do século XXI orienta
Moreira para deter-se a absorver a energia da natureza, os seus tempos
circulares, o erotismo intuído na paisagem e fixado na retina. O poeta está a
propor uma viagem interior, um caminho de reconhecimento que não é infrequente em quem realmente viajou e que o relaciona com o Gonçalo Tavares de Uma viagem
à Índia.
“Quando
o suicídio colectivo da nossa espécie / e o assassinato da Mãe-Natureza forem
consumados (…) haverá uma rata ou uma primata ou uma amiba/ que sobreviverá/ e
iniciará, novamente/ todo o processo da longa e paciente / jornada evolutiva/
até que surja um novo Homem”. E eu, que quero acreditar nas causas justas, nessa
contenção deliberada no essencial, nessa austeridade voluntária da ecologia
radical, apenas tenho um mínimo melindre a expor: talvez o novo homem já tenha surgido e até poderia ser que fosse mulher. Porque encapsulado no seu
descobrimento do eu, o uso continuado do genérico masculino que nem
sempre nos inclui, poderia impedir que elas viajassem para a Islândia. E eu já
confessei que nunca lá estive. Seria bom que esse novo “Homem” sobre o que sem
dúvida o autor há de regressar nos seus futuros trabalhos fosse, mais inclusivamente,
um “ser humano”.
Os
Cadernos da Islândia, de Paulo Moreira, poeta português, chegaram para
ser desfrutados e conquistados, também na Galiza, em virtude desta comunidade
linguística partilhada que nos permite seguir escritas universais como esta. E
a escrita de Paulo Moreira, embora contraste com ela, não pode evitar para nós ecoar
a do galego Elias Knörr. Nas ilhas nem sempre os criadores se conhecem.
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