Não ofereço presentes, mas sossego e lodo. Ad inferos, de Mónica Sánchez


Orfeu, Aquiles, Odisseu e o mesmo Dante, todos tão literários, protagonizaram viagens purificadoras até o inferno. Logo subiram. O lume queima tudo, até os pecados e os seus pesos, e os senhores heróis puderam subir mais ligeiros do que desceram. Mónica não é Orfeu, nem Aquiles, nem Odisseu, nem Dante. Ad inferos, a expressão latina que invoca como título neste poemário, não contem a hipótese da redenção das personagens antigas. Descer é ir mexer nos demos que temos connosco, nos medos, nas pedras que carregamos atadas com uma soga ao colo. Descer é o único caminho, sem alternativas. E sem possibilidades para a fuga.
O livro abre-se no fulgor do vermelho contra o branco que a editora Chan da Pólvora, com bom critério, lhe oferece como vestido: uma edição despida e brilhante para uma poesia despida, densa, concentrada, que refuga os ornamentos. O único motivo orientador, o motivo da descida. Confesso que não me detive, na primeira visita, na biografia da capa; não podia interessar-me agora pela vida de Mónica Sánchez – É curioso isso porque, como a conheço pessoalmente e até tenho partilhado um par de noites de performance e vinho com ela, poderia querer bisbilhotar sobre o seu passado. Mas o latinismo convidava a transcender, a ir para dentro do poço e sentir a urgência de conhecer o caminho interno da descida aos infernos. Ninguém nos obriga a lá ir: descemos só quando é a única via, precisamente a que mais tememos.
A voz autorial insinua que quereria começar como contam as histórias as crianças, mas sabe que é impossível. As crianças, diz a sabedoria popular, vão para cima e ela decidiu ir para baixo. Descer. Descer para se situar num lugar fora do espaço habitual (que também no seu poemário não semelha uma zona de conforto) e fora do tempo. “Nunca soube ser neno”. Por um momento, a minha leitura feminista completa o poema. Digo-me “Claro, porque és nena”. Mais tarde, à medida que leia, saberei que não era a interpretação adequada: as vozes que circulam pelo texto são, quase sempre, masculinas e a tentação biográfica com que tendemos a ler a poesia apaga-se radicalmente. Ainda bem que não me detivera de mais nos detalhes da capa…
Nos poemas seguintes, algumas dessas vozes hão de evocar à sua volta as personagens da mitologia: as harpias, caribdis, medusas, aracnes, polifemos, letos. Não tempo, não lugar. Ad inferos pode viajar-se de qualquer ponto de partida, em qualquer momento. Talvez desçamos aos infernos sempre e para sempre. Quando Mónica Sánchez usa a mitologia é para encher os seus poemas duma força trágica, porque a tragédia aninha precisamente num relato que se repete. Nada pode apavorar-nos mais que um acontecimento que perdure até o infinito: tememos tanto desaparecer como sermos para sempre.
Mas também encontra na narrativa mitológica uma força deslumbrante: a da rebeldia. Os executores da mitologia tornaram vítimas porque o tormento de Aracne, diz Mónica, converte-a em perene. Os poemas de Ad inferos tendem a fechar-se duma maneira evocadora e críptica. Precisam dum contexto cultural complexo e, contudo, são formalmente bem simples. Aracne, uma tecedora de extraordinária habilidade, orgulhava-se a afirmar que a sua obra era de qualidade superior à de Atenea, deusa das artes. Quando a deusa a advertiu de que não devia tentá-la, Aracne propus um concurso onde pudesse demonstrar a sua superioridade e as duas participaram – poucas cousas há mais sugestivas na mitologia grega que esses concursos de habilidade ou de beleza onde concorrem tão ingénuos os próprios deuses; poucas podem tornar mais humanos os divinos. No tal concurso venceu Aracne para dar forma a esse sonho humano de a justiça prevalecer sobre o poder dos deuses. E venceu a tecer um tapiz com algo mais de vinte episódios de infidelidade dos deuses disfarçados de animais. Já sabem, Zeus fora infiel a Hera com Leda, com Europa, com Dánae e assim por diante com meia Grécia. A deusa, furiosa, destruiu o tear de Aracne e converteu-a numa aranha obrigada a tecer para sempre a sua aranheira – uma imagem que para mim é singularmente querida. Mas, precisamente, quando Aracne fica convertida em aranha, o seu tormento concede-lhe uma inesperada eternidade. Talvez a voz autorial de Ad inferos queira apenas um pouco mais de tempo; talvez sonhe com que os infernos sirvam para nos vingarmos de quem ali nos confinou. Porque as personagens mitológicas estão no poemário para garantir o fundo da desgraça.
Contudo, se o jogo mitológico pode às vezes desorientar-nos, exigindo um notável esforço de leitura, com a habilidade da aranha que invoca, Mónica Sánchez tece uma segunda linha de imagens, relativas à natureza. Os cascalhos, a terra, as raízes (outra vez a caminhar por baixo), as gretas, a carne, as larvas dão ao texto uma impronta ecológica. Sem água nem céu: o seu território é o submundo, trágico e envolvente, onde o objetivo seja apenas servir de comida às moscas porque nascemos duma estirpe chamada à condena (e o tema da memória, ligeiramente evocado, vem agora a explicar aquele afã de vingança mitológica).
Cito: “Nacendo entre a terra/os miúdos dedos da pequena provocan un cisma / se cortar a espiga ou deixala medrar ata a sega.” O dilema dum brinquedo infantil, ou duma ação despreocupada de adulto. Quem passeia por um campo de trigo enfrenta o dilema: cortar ao seu passo ou respeitar até o fim o ciclo da vida. Sem dúvida, habitualmente, os humanos preferimos o primeiro. Arrasar.  Num tal caso, o colapso ecológico que se anuncia será a verdadeira descida para o horror.
Cito mais uma vez: “Hipnótica a rapaza de pel vexetal / vertendo os dentes saíndo / de calostro/ A sua códia rebenta a cada movimento. / As pernas nácenlle abríndose enriba da Agoira / É / como unha árbore obrigada / a absorver alimento / volta do revés / forzada á vida / coas raízes por ollos.” Ou, mais adiante: “Son esa herba que saúda baixo a auga/ apegada á pedra e á corrente do río/ Herba que non é herba/ nin cousa/ Herba que se move/ e intenta liberar a pedra do seu devir fluvial/ todo peso afoga nunha danza de vida/ Herba que non o é/ nin herba nin cousa/ entre os pasais dun río/ que non foi/ nin é rio/ Ollos alumando/ e ningunha mao que te arrinque.
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Finalmente, o universo fechado culmina nesses poemas lapidários, que se expressam num só verso: “sentir converterme em insulto”, “Porque livre” onde a luta se estabelece entre o próprio ser que sofre e o nada: nem precisamos de culpáveis para esse padecimento no inferno; o ser humano está avocado a viajar aos infernos.
Os poemas textuais completam-se com outros que chamaríamos de gráficos: dezassete fotografias, em branco e negro, com imagens às vezes fora do foco, frequentemente vegetais, algumas com um pequeno relato de vida (o retrato duma mulher dos anos ’40, o da autora a fotografar uma lápide com os dados do morto à vista): a passagem do tempo que faz sucos na nossa memória, os pontos de referência a que nos seguramos enquanto fazemos a descida ad ínferos e uma sensação contínua de não compreender tudo, de não poder perceber tudo, deixando de parte a dor: o único que é universal.
Mónica Sánchez compõe um poemário intenso, onde expressa com grande densidade um tipo de sofrimento que escapa de etiquetas, um sofrimento essencial, sem dicas para o interpretar, sem concessões. Trabalha sobre os temas do tempo e da natureza, recriando-se no invertido, no poliédrico, no complexo, com uma singular riqueza de imagens. E faz tudo isto em pouco mais de 600 palavras, as que caberiam numa página de narrativa: a brevidade e a condensação são virtudes poéticas especialmente, como ela diria, quando falta a carne que fende na greta com fome e quando o caos vende inocência. A sua intenção, se é que os poemas precisam de intenções, é claramente expressada o fim do livro: não são presentes o que ofereço, mas sossego e lodo.


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