Azimute para o Mecanismo de emergência de Tiago Costa (temperado com fatias de confissões e molho de e-mails)



M
Do que nós precisávamos era dum conjunto de palavras
que escapassem à tentação de repetir slogans publicitários:
as palavras têm manias esquisitas, como essa de ecoarem sem jeito.
Do que nós precisávamos era dum poeta,
dum domador que controlasse o seu ardor; os espasmos de fogosidade.
Este nós pode ser variável em número e pessoa;
é um nós declinável.
Poderia aludir à literatura galega, ou à portuguesa, ou à galego-portuguesa
─ no caso improvável de ser permitido que esta exista ─.
Também poderia esse nós apenas consistir em eu e mais todo o pessoal,
se não fosse que precisar um poeta envergonha um bocado,
e que temos mais alguns no país, esforçados e tenazes,
que ninguém lê.
Minha mãe, quando eu era menina, se julgava que não comia bastante, entrava em pânico:
─ E tu? Porque não comes? És poeta?
O melhor era declarar-se poeta para evitar maior justificação:
─ Sim, mamai, por acaso sou poeta.
Haveria que explicar à mãe que não sou,
e que poesia é substância rara:
tolera-se só em doses ínfimas,
existe numa quantidade muito inferior ao que figura por aí publicado.

E
            A maioria dos escritores não dispomos da facilidade/felicidade do Tiago Alves Costa para acertar com a arte poética. Tentamos ter com ela e ela escapa, como um amante que não acudisse à cita. Se calhar, para entreter o tempo e por aguardá-la, começamos a escrever histórias. É bom assim, um relato bem contado não faz mal. Como temos que nos inventar personagens, os poetas fracassados não podemos incorrer em desvios, nem nos permitir o prazer de apropriar-nos da linguagem. Servimos ao relato. Mentimos. Não devem julgar-nos duramente por esta insistência em inventar-nos tudo. É possível que coloquemos palavras em boca duma personagem para a melhor caracterizar –nem sempre por pensarmos exatamente isso–, mas essa é uma das formas mais suaves da mentira. Na sociedade, um juiz ou um médico têm nome; isso significa que acumularam durante os anos de vida profissional um certo prestígio. Porém, um escritor deste grupo dos romancistas não consegue nome da mesma forma. Antes de mais, o seu prestígio procede de ter inventado histórias falsas. É um grande mentiroso que, em vez de ver-se desprezado pela sua condição, é considerado justamente por ela. Nada muito respeitável.  Terei de confessar:
─ Mamai, apenas tenciono ser narradora. A falta de apetito tem a ver com essa culpa.
Em consequência, narrar tem vantagens; a de tornar-se perito na mentira e a de poder comer sem perder glamour. Os poetas, na teoria da mãe, têm de ser todos tísicos. Mesmo se isto não for estritamente certo, dar no alvo em termos poéticos é terrivelmente complexo. Porque devem dizer verdade. Mas com frequência, ensarilham-se nos jogos concetuais, fazem malabares tontos com as palavras ou tornam-se tão herméticos que nem as mães os entendem ─ daí o de servirem mais sopa, para eles calarem duma vez─.
Porém, ainda não sendo poeta, sei quando algo acontece. A poesia tem de edificar uma potente performance: está lá para isso. Para que percebamos que está a suceder algo. Nem importa bem o que. Ativo o mecanismo. Quando um poeta, como o Tiago, aparece, põe em marcha os motores. Algo vai acontecer: nos sete dias da criação, hão de aparecer as criaturas todas, também as montanhas e ─ cuidado! ─, os cataclismos.
C
Nada, minha gente,
nada havia nas profundezas.
Por muito que eu tateasse no fundo da literatura,
tão feliz ao evocar este pequeno conto da minha infância
Nada.
A poesia, porém, existe: cá está!
A
 Na altura do poema 4 eu já pensava que o poemário estava escrito para mim.
Como poderei ser assim tão vaidosa?
Bom, sei que é ideia impossível: nem nos conhecíamos bem!
Nenhuma cabeça sã imaginaria que em tais circunstâncias o mecanismo pudesse estar escrito para mim,
embora a cada ano mais vezes me sonhe como destinatária única
de tantos folhetos, livros, capítulos e calhamaços
que se dão ao prelo sem potentes altifalantes.
Aliás, eu não tenho que conhecer os mecanismos para os mecanismos operarem
porque são máquinas que obedecem a sua disciplina
cegamente
e o texto era como escrito para mim, então era escrito para mim.
Ninguém morreu nunca por ter apagado um como.
Ou talvez sim.
Se não conseguires identificar a morte à primeira vista,
lembra que vida e morte têm o mesmo tamanho,
a mesma espessura, a mesma crueldade.
Consola isso: para uma criancinha, uma morte pequenina;
para os velhos anciãos com existências carregadas de erros, uma morte maior.
─ Mortes de tamanho S, mortes M, mortes L, mortes XL e mortes XXL─.
Embora não for certo, consola.
E uma força escura no verso atrai-me
i r r e m e d i á v e l m e n t e.
Ambas, vida e morte, têm o mesmo tamanho.
A mesma espessura. A crueldade.

N
Vou ter de repetir esses versos. Ao princípio, mencionar-te-ei:
─ Assim disse o Tiago Alves Costa em Mecanismo de Emergência.
Pronunciarei muito séria, para presumir de pessoa lida. Até que um dia não consiga evitar a traição. Às vezes ergo-me da cama com necessidade de seduzir mesmo as moscas. Nalgum desses dias há de a frase sair sem o teu nome. Confesso o delito antes de o cometer. Bem logo, até julgarei que se me ocorreu a mim. O cérebro não conhece os tempos verbais; nem sabe de passados, nem de futuros, muito menos de direitos de autor. E a verdade é que o meu cérebro já não pode imaginar-me a mim própria antes de ter enfrentado as manobras de suporte básico da vida. As manobras certas.
É só um exemplo.
Confio na minha memória. E sei que hão de os teus versos escapar pela minha boca.
Quem fez presente a quem?
Tu, que me deste as palavras?
Eu, que confessei desejá-las como próprias?
Quem nos faz o presente na literatura?
O autor que lemos? A leitora que nos lê?
A menos que ambos fechem um círculo,
uma figura geométrica formosa e perfeita.
Um círculo.
Nosso.
E, como partilhamos o círculo,
como desenhamos o círculo nós os dous juntos,
já te conheço,
embora não te conheça assim tanto,
e já tranquilamente penso que o livro tinha de ser para mim.
Se autores e leitores juntos se amoldarem a essa forma sinuosa,
então a falta de leitura é um atentado contra a matemática.
E a critica, quando no difundir adequadamente a existência
dessas figuras geométricas eternas e perfeitas,
tem mais bolor que o próprio Tales de Mileto, o que mediu as pirâmides.
Isso por não mencionarmos Epicuro.
Epicuro, tão adito aos prazeres, detestaria críticos.
O seu silêncio, a indecisão.

I
Como sabes, as mulheres da minha família nunca tiveram muita estima por poetas.
Poetas não comem.
Poetas não dizem verdade; dizem poesias e demais sonsices
para engatar, para enganar, para presumir quando declamam.
Se eu disser que temos diante dos olhos o mais complexo e fascinante mecanismo que já vi,
tu coras e não acreditas.
Por discrição ou por fingimento.
Mas eu poderia estar só a insinuar que não comes e harmonizas bem as mentiras.
Quando procuro o que é para mim o mecanismo,
quando conto como furou cá dentro,
pretendo fazer um exercício de sinceridade.
Seria mais interessante para demonstrar inteligência
assinalar um par de erros ou, especialmente, fazer citação de pensadores na moda.
─ especialmente franceses. Todos os filósofos franceses erotizam. Sem exceção.
Têm essa habilidade. Por isso aparecem tanto nas resenhas ─
Mas faltaria o essencial: a verdade,
essa senhora que caminha despida,
ainda que frequentemente se deixe ver com péssimas companhias.
Sei, portanto, da responsabilidade que carrego em ti
com as minhas palavras, pesadas como ferro.
Dalguma maneira, a leitora fere.
Crava no alvo um dardo
quente.
Eu apenas queria expressar, ao te chamar de poeta,
que não és um artesão desses que apalpam as palavras,
que não és um narcisista desses que tanto vemos nos saraus das letras,
nem um morto-de-fome.
És um professor de ginástica:
colocas as palavras, mandas que marchem, que corram mais rápido,
que parem,
que façam flexões,
até tu ficares à vontade com o resultado
Contas as pulsações das palavras e sais.
Nada a celebrar. Nada a dizer.
Tens outra turma que atender.
Mas acho que não ficas nunca numa posição de conforto.
Isso é de agradecer.
Especialmente neste tempo.

S
Em tempo de guerra
– Esse tempo que nunca experimentámos,
que nos contaram outras gerações com as suas batalhas idealizadas
ou as amizades intrépidas que se graduaram em medicina ou em jornalismo
ou que não se graduaram, mas que tinham a santa coragem de ir-se embora lá longe para dar
o tempo, a estabilidade,
para dar-se
no tempo, na voragem,
para fazer o que nós não fizemos –.
Em tempo de guerra, digo
corres, corres o mais rápido que podes
e, quando tentas desferir o grito, e o ar não é expelido e o diafragma trabalha,
apercebes-te de que talvez tenhas lutado em várias guerras,
nessas guerras da General Alva com o De Sempre,
nessas tuas guerras,
que te atropelam na saída dum bar
entontecido com a notícia
de que não existe essa guerra:
a tua.
Não existe.
Ou talvez só exista a tua guerra
e tudo o demais seja mentira.

M
Nalguns momentos penso que nos conhecemos dantes,
dum tempo remoto e antigo que não habitamos
e vieste a pôr em palavras sensações que partilhamos ou que te contei
numa dessas noites cumpridas em que combinávamos para estudar juntos
e que nunca existiram.
Nalguns momentos penso que o mecanismo estava escrito
mil anos atrás,
que eu devorei este livro noutra vida
e que ficou soterrado na areia.
Então tu és um simples arqueólogo
e apenas desenterraste o livro.
Isso há de passar inadvertido para o público e a crítica.
E eu guardarei este nosso segredo.
Mas há também outros momentos
em que dizes o que eu nunca saberia dizer
Posso perceber.
Como agora, quando estás na Alemanha e soa o telemóvel
e amavelmente solicitas que eu construa um azimute para entenderes
onde chegou o teu mecanismo.
Verdade obriga,
de maneira que devo confessar que nem sei bem o que é um azimute
e volta a soar o telemóvel para me dares o significado de “azimute”,
uma palavra que eu não tinha
e que agora há de ter a tua face quando eu a escrever.
E eu hei de escrever azimute mil vezes
para ressarcir-me à vontade da ferida desta língua que me negaram
e também para rir da crítica e partilharmos um outro segredo.
Porém, voltemos a esses momentos em que o teu verso é livre e feliz e dizes
Hão de as coisas cair sobre nós com calma
revisando a hipocrisia e as mentiras gentis
e eu sinto o teu sentir
mas leio o poema duma outra forma
porque mal chego ao fundo
e fico fascinada com esse
hão de as coisas cair sobre nós com calma
que eu nunca diria. Não assim.
E odeio-te um bocado.
Um instante, não mais.
Mas nesse instante a inveja esta a corroer-me
porque eu nunca saberia dizer assim e com essa profundidade.
Apodera-se de mim a fúria da narradora
e tenciono devorar as tuas palavras
confiando em aprendê-las de cor
porque no melhor dos casos eu apenas diria
As coisas hão de cair sobre nós com calma
ou o espanhol sorriria por trás e diria
cairão as coisas sobre nós com calma
Mas essa rutura, hão de as coisas cair,
que já emulei alguma vez neste escrito.
cria ritmo.
Amar é ritmar,
de maneira que é importante obrigar as palavras a terem corpo
como têm pele as vozes quando cantam
para virem fazer parte de nós.
E, por muito que tente consolar-me com a minha condição de híbrida,
mestiça como todos @s galeg@s,
sei que há muito mais lá,
nessa felicidade da palavra que não possuo
e que no mecanismo brilha:
o poder de dar profundidade à existência através da palavra.
Bem-dito sejas!
Porque eu quereria ser fiel cumpridora das minhas funções literárias
empregada da literatura ─ das nove às seis da alegria triste ─
Mas nem isso consigo.

O
            Li o mecanismo por primeira vez na praia. Gosto de nadar. Nado mesmo duma maneira algo excessiva quando vou até a praia para gastar um bocado de energia e não me transbordar na vida quotidiana: é importante caber em si. Mas naquele dia nem pôde chegar-me ao mar. Devorei o livro inteiro ─ ou, sei lá, talvez, o livro me devorasse a mim, ─ e regressei para a casa seca e fascinada. Assustada também. O prescritivo seria ler um livro de poesia aos poucos, para perfilar bem os matizes, para matutar nos assuntos com rigor. É fulcral equilibrar esse pendor para o thánatos e para o eros que poetas esbanjam cá e lá. Aliás, se poetas não comem, tem de ser porque deslocam a carne para as letras. Sendo assim, cumpre não se exceder com tanta substância nutritiva. Portanto, é lógico que me assustasse: não é são devorar sem bem mastigar. Nem muito menos é normal segurar-me à ideia de que não penso emprestar o meu exemplar a ninguém. Sempre acabo perdendo os livros de que mais gosto. O meu mecanismo tem areias de praia e quase todas as páginas dobradas para lá regressar. Ninguém transitou por elas até hoje.
Queria ser meu vizinho, uma página com uma dobra,
São os passeios que nos caminham, outra dobra,
Os homens que carregam dúvidas…, mais uma.
O riso
Exército de mães
7 voltas dá a chave da porta do vizinho
Tantos sinais que engrossam o papel e, a cada vez que leio de novo, encontro sensações novas. Logicamente, cada revista do livro faz-me duvidar da interpretação anterior. Não sei resumir – nem sequer para ti – o que o mecanismo me deu. Mas, como esperas que construa um azimute, devo ser metódica e ordenada. Devo fazer inventário. Encontrei:
─ 1 dor essencial, irremediável.
─ 2 faces, como Jano; uma olha para a esperança; outra conduz para o centro de ti mesmo. São irreconciliáveis os dois olhares, a tensão.
─ 3 ou 4 perdas. Soam irreparáveis.
─ 4 (ou 5) pontos cardinais que, felizmente, desorientam: como expressar-nos sem trair-nos e sem magoar? Como é possível sair de nós para comunicar nada? Faz sentido (ainda) um tempo de pautas? Para que servem os barcos parados no cais? Para que serve a poesia? E, no meio, uma voz que decide habitar a autenticidade, mas, a maioria das vezes, nem sabe nem pode evitar a ironia…
─ 6 ou 7 derrotas, todas coletivas (ou nem tanto assim).
─ 8 ou 9 homenagens ao menino que foste. Atenção com isto: nunca chegamos a ser algo diferente daquela semente.
─ 10 referências ao contraste entre as aparências e o real, porque poetas são tão ingénuos que ainda acreditam no real. Ou porque a sua arte é tão antiga que vem dum tempo em que nem o irreal se tinha inventado. Ainda.
Acho que este mecanismo vem dum percurso longo, que explodes após ter tentado resistir com tudo isto acima. Intuo algum cordão umbilical roto. Tencionas curar a dor dessa rutura com palavras, como se pudesses mimosear-te num ritual, pronunciando cuidadosamente um mantra. O curioso é que não sei se acalmaste tu, mas as tuas palavras – tão elegantemente cuidadas, sem dúvida– produzem também dor. Percutem com ferocidade. Lá é que consegues o trabalho político de multiplicar-te e, multiplicando-te, enfrentas a complexidade da vida e reduzes a simplificação das cápsulas minúsculas onde moramos. Crias um espaço para a ausência. Um desafio.
Mas depois, quando o mecanismo da emergência já foi ativado, quê? O que fazer?
Brindar, talvez. Brindar, com tempo.


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