Matar os caubóis com Alexandra Coelho
Alexandra Lucas Coelho assina um título
provocador, O meu amante de domingo (Tinta
da China, 2014), onde assistimos ao que fica após a catástrofe num caso
amoroso, mais ou menos turvo, desses que marcam quem os experimentar, com uma
perspetiva atual, um ritmo vibrante e um humor desatado. Porém, o assunto, como
sempre na literatura, não é assim tão importante; é o modo de contar o que
captura a atenção, o que entusiasma: um estilo rápido, descontraído,
profundamente divertido e, contudo, pungente. Poético mesmo. Inconfundível.
Imagine-se um capítulo onde a protagonista, uma mulher vital e
independente, é capaz de começar assim: “Eu quero trincar-lhe o coração cru,
não menos do que um rei já fez, extrair o tubérculo peniano, tritura-lo
picadinho […] Sou uma assassina em série porque quero matar o cabrão muitas
vezes. Odeio-me pelo tempo que perdi a odiá-lo, e odeio-o pelo tempo que perdi
a odiar-me. Uma pessoa no meu estado não fode um mecânico ou um futuro Nobel
porque se esqueceu de um cabrão, ou para o esquecer. Uma pessoa no meu estado
fode um mecânico ou um futuro Nobel por se lembrar de um cabrão e lembrando-o”.
Ou ainda um outro começo: “Gosto de homens. Os homens são a imaturidade das
mulheres, difícil não ficar refém neles”
A protagonista, ao revisar essa relação prévia, não permanece à espera,
segundo os rituais da estação do desamor, tão gratos aos filmes e aos romances
nascidos para se tornarem roteiros cinematográficos: lá estão o mecânico e o
candidato a prémio Nobel de literatura para entreterem o corpo e as suas
pulsões, mas também para indagar no porque do erotismo. Quando o amante
enganou, mentiu, e massacrou as palavras pronunciadas na intimidade não haveria
razão para o lembrar, se não fosse que às vezes vivemos também na procura de
quem antes fomos, se não fosse que a protagonista não pode perdoar-se por tanta
ingenuidade, pela tensão: “Quando nos fodem o coração de um momento para o
outro, a grande perplexidade não é como vivemos o que vivemos, mas como não
vimos o que não vimos, ou seja, não a entrega, mas a estupidez. […] Golpe de
misericórdia é saber logo que foi mentira. Porque se algo aí morre, algo começa
a matar”.
A volúpia é uma forma suprema de autoconhecimento. Daí, desse afã de saber,
que a protagonista não permita as suas feridas cicatrizarem. Quando revê
mentalmente os capítulos daquele caso finalizado, a antiga proximidade dele
dói. Instala-se na ferida de não poder ter com ele ou, mais bem, na ferida de
já não ser aquela. E como está a cicatrizar, mexe na ferida para ela sangrar de
novo.
A psicologia diria que essa é uma
atitude destrutiva. Os higienistas das relações sociais insistiriam na
toxicidade desse amor, como se tivéssemos a obriga moral de nos mantermos em
perfeita saúde mental, para ao final oferecer ao mundo um lindo cadáver. O
tabaco mata, asseguram as caixas de cigarros, ilustradas com fotos
assustadoras. Assim sendo, o pessoal decide não fumar. Em perfeita coerência, a
sociedade atual cuida-se do amor e dos seus excessos e qualifica rapidamente de
tóxicos todos os relacionamentos que não servem para a felicidade. “Isso não
dá!”. Como se a felicidade, esse projeto de cidadãos bem-comportados,
constituísse o fim único, o nosso alvo. Bem, também a vida mata.
Inexoravelmente. Talvez por isso decidamos não a experimentar na sua
profundidade, assim como decidimos medir-nos, entregar-nos em pequenas doses
para não nos mancar de mais. A protagonista de O meu
amante de domingo não se dosifica. Não tem planos. Apenas o de
nadar e alimentar a gata da sua amiga.
“Raramente digo um gajo”, esclarece, ocupada em analisar as suas
próprias palavras e, particularmente, os muitos palavrões que emprega. Mas vai
estourar rapidamente; prefere lembrar o amante como “o cabrao do filho da puta
do caubói”. E nesse excesso verbal, nessa ferocidade expressiva, a autora
dispõe as suas melhores armas. Armas inteligentes, de finas análises
sociológicas e literárias, e armas cómicas. A protagonista revisa as gralhas
das mensagens que chegam do telemóvel, vai para a piscina e lá esbanja a
energia sobrante; regressa para debater sobre literatura −num diálogo que
deveria ser estudado nas aulas de Teoria da Literatura das Universidades− com o
candidato a Nobel, que apenas quer metê-la na cama, mas tem que passar antes
pela prova de suster o ritmo duma conversa espinhenta com quem já sabe todas as
armadilhas que nos puseram dentro da cabeça Dostoiévski, Nelson Rodrigues e o
próprio Joyce, esse que conseguiu escrever o mais famoso monólogo da história
da literatura sobre a massa do seu próprio matrimónio.
Ao encontrar tanta vida num romance,
tive de proceder de maneira sistemática e rigorosa e dei um passo para trás no
tempo e vários para a frente na leitura até conhecer outras obras da Alexandra
Lucas Coelho, como o Caderno afegão ou Oriente próximo, narrativas de viagens, resultado dos
seus trabalhos de repórter em terras longínquas e perigosas. Alta qualidade
também, mas o romance permite, sem dúvida, outras liberdades. Recentemente dei
com o E a noite roda, vencedor do Grande Prémio de Romance e
Novela da Associação Portuguesa de Editores em 2013. E deliciei-me, mais uma
vez, com o relato da ferida, nesta vez na forma daquele Léon que não teve a
coragem de romper com a esposa, numa visão aceda, mas desdramatizada, dos modos
eróticos do nosso tempo e da fraqueza das grandes palavras. Noutras épocas, as
de Emma Bovary, Ana Karenina ou Ana Ozores, as mulheres casadas tomavam amante;
o irresistivelmente contemporâneo é que as mulheres livres tomem amante, não
companheiro, que não se rendam aos preceitos dum modelo de casal, que decidam
os encontros eróticos e os seus ritmos e, no entanto, percam o controlo de si
−a definição mais clássica do amor.
A originalidade da narrativa de Lucas Coelho nem só faz rir e comove; é
inevitável que muitas escritoras atuais peguemos nela como se fosse um
território já visitado, como se tivéssemos experimentado o texto. Precisamente
esse texto.
Não vi resenhas críticas destes
romances, fora dos resumos habituais. E teria gostado. Porque acho que essa
liberdade criativa com que Alexandra Lucas Coelho aborda o desamor está a
romper as cadeias causais da ideologia. Por dentro. Noutra época os romances
tinham vozes exclusivamente masculinas (“Je suis Madame Bovary” dissera
Flaubert). E agora, quando passaram a encarnar-se em personagens femininas, o
relato da sociologia tende a fazer-se ouvir a mais: as mulheres têm de aparecer
como independentes, decididas, prestes a manter a sua liberdade por cima de
qualquer outro objetivo, como se a literatura houvesse de se ajustar a um
decálogo de ideias, como se tivesse de ser “literatura de ideias”. Sem perderem
autonomia, as protagonistas de Alexandra Lucas Coelho, optam por outras vias:
as do exagero e a desesperação. Coladas aos seus sentimentos, adotam formas
sutis de rebeldia, como a vingança. Escrever a história para se libertar dela.
E apontam para uma desconcertante intensidade: esse assassínio do caubói tão
simbólico como catártico. Numa sociedade politicamente correta, uma tão
desaforada tentativa de recuperar o controlo não pode ser aceite. Lá justamente
é que nasce o desafio das artes; quando a autora fantasia com a violência e
quando a resolve, como é de esperar, simbolicamente, a brincar nos limites do
vivido e do imaginado. Porque, como diria a autora, “o que lês torna-se a tua
vida. Se a literatura não é vida é o quê?”.
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