A filosofia que faz parte da cultura galega: Vir a menos de Brais Arribas


* Texto para o lançamento na livraria Numax

Uns dias atrás, o nosso autor, Brais Arribas, assegurava no Facebook, que a filosofia não fazia parte da cultura galega. O motivo exato da sua ironia não era explícito, mas provavelmente teria como fundo qualquer assunto de atualidade de que agora mesmo podemos prescindir. Interessa a carga irónica do comentário, a sua potência. Todos os paradoxos da análise da linguagem, de Frege a Bertrand Russell, saltaram pelo ar naquele preciso instante porque a frase, “a filosofia não faz parte da cultura galega”, vinha a significar justamente o contrário do que aparentava: “não se entende a cultura galega sem filosofia”. Como estrela das redes, o autor não tem futuro. Porque abriu a porta para que, imediatamente, todas as suas ciberamizades afiassem facas e falassem noutras exclusões dos dinheiros públicos: o pós-drama, a música de câmara e a dança contemporânea estavam desatendidas. Também o patrimônio antropológico, a televisão digna e a literatura não desenhada para o consumo nos centros de ensino, viemos a saber, foram banidos dos investimentos públicos. Em soma, os criadores, artistas ou profissionais da cultura galega lamentavam não se verem representados no quefazer das instituições − isso não surpreendia ninguém −, enquanto a frase do Brais ficava a pairar no ar. Parecia uma queixa, mas, sobretudo, continha um desafio.
Venho cá para assumir o desafio de refletir sobre essa frase e com isso talvez ensarilhar-me em polêmicas, na boa companhia de dous amigos, o autor e o editor dum livro que adoro. Escolho meter barulho porque comentar o texto seria reiterativo: já me fizeram a honra de solicitar-me o prólogo, onde tive a oportunidade de me expressar, se não de forma eloquente, sim com intenção séria e rigorosa. Agora, para não aborrecer os presentes, vou usar modos mais sinuosos e poliédricos a apresentar os prazeres da leitura de Vir a menos. Tentarei trabalhar em forma de decálogo e, seguindo as preferências artísticas do autor, desenvolver com ironia as dez causas por que Vir a menos não deve ser lido.
Primeira causa: Vir a menos é uma leitura filosófica e, seguindo a premissa de partida, não faz parte da cultura galega. A cultura galega, sei lá de que poderia estar constituída exatamente. Uns diriam dos produtos feitos em galego ou capazes de refletir a nossa peculiar cosmovisão; outros diriam que dos produtos feitos por pessoas galegas, mesmo em qualquer língua ou ajustados às preferências do global. O debate iria desenvolver-se em termos nacionais, identitários (presumivelmente inconstitucionais). Nos dias em que o Brais Arribas escrevia no seu Facebook a frase que nos serve de leitmotiv, eu participava com outros escritores na livraria Couceiro num debate sobre literatura galega. Quando chegou o momento da minha intervenção, eu, a última em falar, quis como Brais acudir a um dos recursos mais idiossincráticos da cultura galega, a retranca, e expliquei uma série de causas pelas quais a literatura galega teria morrido. Seguramente eram temas controversos; apelavam às exclusões e censuras, aos saraus e subvenções institucionais e também aos efeitos da globalização e a transformação da Kultura com K em “indústrias culturais”, que é como o capitalismo chama ao que nos torna em humanos. Porém, um dos participantes na mesa interrompeu-me para assegurar que a cultura galega existia, visto que se publicam livros em galego e citou profusamente os próprios; não estamos, assegurou, nos séculos escuros. Oh, sempre adorei o mansplaining! Ao tempo que eu ficava corretamente informada, a bendita retranca deixava o seu cadáver sobre a mesa. Conclusão: não devemos ler Vir a menos porque a filosofia galega, como a literatura galega, não existe. É certo que temos algumas figuras interessantes, como a do autor, (e, aliás, muitas delas emigradas) que pensam muito e bem, mas nem têm onde publicar nem, quando publicarem, são lidas. Poderíamos esclarecer os motivos pelos quais uma sociedade condena os seus pensadores ao silêncio, mas, por enquanto, basta com manter a condena também para este livro. Porque estamos orgulhosas da cultura galega!

Segunda causa. Regressando para o que pode ser a cultura galega (comer grelos, calçar socos, beber licor-café, ou escrever obras de pensamento em galego), vou situar a restrição inicial de que para fazer parte da cultura galega, qualquer produto deveria poder ser fechado na cidade da cultura, um monumento singular (e caro), com régias instalações (também caras) onde qualquer um pode dar um passeio (barato). Num tal contexto, dedicar a Vir a menos uma sala seria excessivo; isso deve bastar para não o ler. Porque, dedicar uma sala a esta obra exigiria as penosas circunstâncias de que o Brais tivesse morto na Argentina, tivesse sido trazido num caixão funerário para ser soterrado como galego ilustre pelos seus inimigos e só depois poderia ser venerado o seu livro em visitas guiadas. A restrição de entrar na cidade da cultura é imprescindível porque nesta indagação não sabemos ainda o que é cultura galega. Apenas podemos orientar-nos com a dica do autor: “a filosofia galega não faz parte da cultura galega”. Nunca será uma estrela do Facebook nem do Instagram, não, porque, como todo o mundo sabe, a filosofia importante foi feita em grego ou em alemão, ultimamente em inglês. Para a filosofia galega (ou danesa ou nigeriana) fazer parte da cultura galega (ou danesa ou nigeriana) é preciso, acho, que se formule na língua própria. Porém, em galego-português apenas caberia o tema da saudade. Não sendo saudosista, Vir a menos, que se projeta para o futuro político e contém uma rebeldia inédita na morrinha, nem continua o cânon identitário que lhe estava reservado, nem foi escrito nas grandes línguas difusoras do pensamento cujas citações eruditas servem para remediar a própria ignorância em qualquer conversa. Ou o desconsolo de estarmos vivas. Dito doutra maneira, reconheçamos duma vez que a filosofia é um saber doutro lugar e doutro tempo e deliciemo-nos na tecnologia para sermos felizes. O menos que podemos pedir à filosofia é que nos faça felizes. Bem é certo que nunca nenhum filósofo procurou deleitar inocentes, mas esse é um problema fundacional do campo. Não nos compete aqui. Para ler o livro exigiríamos da Axóuxere uma versão em videojogo ou a voz de Brais bem editada num podcast: se quiser ler Heidegger, que o leia ele!
Em terceiro lugar, a leitura deste livro deve ser evitada em benefício da ginástica. Explico-me. Quando defendem a presença da filosofia no ensino secundário o clamoroso grito do professorado implicado coincide em notar que este estúdio está a ser deliberadamente apagado do curriculum pela sua condição estratégica e subversiva; ensina a pensar. Logicamente, os que decidem estes assuntos sentem-se atacados: por acaso nós, os políticos e burocratas, que mal lembramos a caverna de Platão, tão ridícula, por acaso nós, que decidimos os grandes assuntos, não pensamos? Ofendidos, vingam-se decretando que para pensar hoje importa apenas a matemática e a techné. Para dizer verdade, nem Pitágoras nem Descartes estariam muito distantes deste ponto de vista. Ensinar a pensar é um bonito lema, mas é apenas isso: um lema. Todo docente acha que essa é a sua função. Milhares de páginas de pedagogia asseguraram que ensinar a pensar era o labor dum ofício vocacional e entusiasmante antes de se tornar num aborrecido treino para a obediência. As professoras de literatura acham que ensinam a pensar, as professoras de matemática acham que ensinam a pensar também, e até as professoras de música, se fizerem bem o seu trabalho, ensinam a pensar. Estou tentada a afirmar que mesmo as professoras de ginástica (que, como todo o mundo sabe não são verdadeiras professoras, mas atletas fracassadas que cobram o mesmo que as demais sem terem exames para corrigir), estou por assegurar, digo, que até elas dirão algo como que ensinam a pensar com o corpo. O grémio de filosofia, portanto, exagerou o seu contributo ou bem os demais comeram do seu bolo sem os filósofos se aperceberem, o qual seria ilustrativo da sua inépcia. Ao se apresentar como um livro de filosofia, Vir a menos tem vocação subversiva. Tenciona ensinar alguns dos supostos do pensamento contemporâneo. Um horror, porque o próprio professorado de filosofia investe 3 ou 4 meses do curso escolar em explicar que tudo está nos gregos. Suspeitemos de Brais e optemos pelo professorado de ginástica. O cérebro não é um músculo e os tríceps nunca enganam: ou tensos ou flácidos, sem estádios intermédios nem reviravoltas de filósofo.

Como quarta causa para se recusar a ler, enunciarei o esvaziamento da filosofia. Numa visão esquemática, o filósofo (masculino é cá obrigado) era na antiguidade um ser ocupado das grandes perguntas. O seu compromisso com o conhecimento (essa tensão que culminaria na diferença entre episteme e doxa) outorgou, por exemplo, a uns senhores que, em sentido estrito, estavam a cometer erros − como acreditar em que tudo é lume, ou ar, ou terra, ou água – o privilégio de não se conformarem com mitos. Bonita maneira de apagar a intuição artística do panorama! É certo que devemos conceder-lhes a virtude da teimosia, a capacidade de se concentrarem no exagero. Porém, o nascimento das ciências iria privar à filosofia daquele brilho das perguntas fundamentais; existiam outras formas de conhecer com as suas próprias regras de jogo. E a filosofia devia deixá-las sair de casa como uma mãe que acompanha resignada as filhas no momento de fazerem a sua vida adulta. A palavra chave cá é, precisamente, resignação. A filosofia aceitou, com a nostalgia de quem sabe que perdeu o papel principal, que se emancipassem outras aproximações enquanto apenas o monstro ficava na casa. Porque, desprovida de boa parte do seu objeto (à medida que nasciam as disciplinas da modernidade), apenas restariam temas menores, nomeadamente os metafísicos e morais. Apavorados, os filósofos responderam com furor terminológico, difundindo, como nunca antes, palavrões do estilo de ontologia, fenomenologia ou epistemologia. Estavam a justificar-se com um método, uma espécie de pergunta pelas causas últimas que ultrapassava os interesses de progresso, limitados, das ciências. Às vezes até pareceria que a etiqueta de filosofia cobria apenas um estilo, mas voltaremos sobre isso mais tarde. Obviamente, para esconjurar novas perdas, os filósofos geraram um feche categorial e já nunca mais permitiriam que ninguém se apropriasse das suas palavras: não se praticaria ontologia numa faculdade de física, embora fosse lógico. Para pôr um exemplo, na linguística contemporânea cultivam-se disciplinas filosóficas, como a epistemologia linguística, mas o diálogo intelectual é tão quebrado que os grandes administradores dos planos académicos ainda não o souberam e os pobres estudantes de filosofia apenas cheiram o que chamam de filosofia da linguagem (porque administrativamente é filosofia) e que pratica análises semânticas tão antiquadas quanto peregrinas. Estudam assim que não se pode predicar a verdade ou falsidade da frase O rei de França é caneca porque a França é uma república ou que as expressões luzeiro matutino e luzeiro vespertino referem ambas ao planeta Vénus. Gosto imenso de os filósofos estarem em dia sobre a revolução francesa e sobre o nome dos planetas; mas são cousas que aprendemos no primário e não, não me parecem sérias.
Sendo um livro de filosofia, até provável que Vir a menos não descubra nada que não esteja noutra parte. A ecologia radical manda virmos a menos, a economia feminista manda virmos a menos, a resolução de conflitos e a mediação mandam virmos a menos e o diálogo intercultural e o apreço das artes contemporâneas clamam por um vir a menos. Em que estava a pensar o autor quando se sentou a escrever sobre isto? Em se apropriar dos temas alheios?
Quinta causa: a conversão da filosofia em história da filosofia
No estado atual de especialização dos estudos, deveria florescer uma epistemologia, uma teoria do conhecimento, aplicada a cada titulação superior. Só desta maneira os supostos de cada disciplina poderiam ser analisados nos correspondentes quadros e registar se avançamos. Explico-me: a comunicação audiovisual, titulação universitária, não partirá dos mesmos supostos que a arquitetura, que também tem o perfil de formar especialistas superiores. Haverá uma maneira de produzir conhecimento no audiovisual, espero, e uma maneira diferente de o fazer nesse saber entre o artístico e o técnico que é a arquitetura. Quando negarmos uma epistemologia para as disciplinas universitárias, contribuímos a que sejam meras technés, a que a faculdade de arquitetura seja um lugar onde conseguirem um título pessoas que fazem casas, enquanto a de filologia seja uma academia que ensina idiomas, sem mais. Os filósofos não sabem defender a importância do seu campo. Talvez devam inscrever-se em cursos de marketing. Porém, teimaram em fazer do pensamento a sua reserva natural. Será que temem que outras pensem? Por acaso, como diziam os políticos, os demais não pensamos? Cá vem para a minha cabeça a lembrança do meu antigo alunado na faculdade de filosofia. Cursavam o primeiro semestre do primeiro ano e, a cada vez que eu perguntava algo, respondiam: “eu, como filósofo, acho que…”. Detesto profundamente esta maneira de falar narcisista que propagamos nas universidades: estudantes de filosofia que são filósofos, estudantes de história que são historiadores, estudantes de políticas que são politólogos. Ofuscados pelas grandes palavras, em vez de as obrigarem a vir a menos.
Curiosamente, a necessidade dum enfoque filosófico aplicado a qualquer disciplina sustentou nas últimas décadas a aparição do termo “narrativa” ou “relato”, um dos mais vazios que existem e que trata de denominar os procedimentos internos de cada campo, contornando a proibição de falar duma filosofia desse campo. E o mesmo poderia ser dito para a ética. Como é que não existe um enfoque ético para quem se graduar em medicina, em direito, em jornalismo, em linguística, em pedagogia? Porque é que a filosofia fica com todo o importante?
Cá cumpre avançarmos com cautela. Porque, à medida que as ciências descolavam da sua matriz, a filosofia normal, vou chamar assim a praticada fora dos grandes centros de irradiação do saber, abandonava a sua vocação de se perguntar pelos porquês para se centrar em praticar a história. Estudarmos filosofia no secundário evoca a menção de autores seriados: Platão, Aristóteles, Santo Tomé, Descartes, Hume, Kant, Marx, Nietzsche, Wittgenstein. Por exemplo. Uma lista de autores que podem ser perguntados nas provas de acesso à universidade. Se por correção política houvesse que acrescentar uma mulher apareceria Hannah Arendt, não muito suspeitosa de feminismo. Ficariam excluídas Hiparquia, Maria a judia, Christine de Pisan, Maria Gaetana Agnesi, Alexandra Kollontai, Lou Andreas-Salomé. A exclusão é indicativa da ideologia patriarcal que aplica a filosofia, mas também da negação dos outros significativos: eurocentrismo, imperialismo são fortes na seleção. E o professorado de filosofia, por muito que reclame que a sua cadeira ensina a pensar, especializa-se em história, aquela disciplina que ensina a fazer memória dos factos para não incorrer nos mesmos erros. Porém, é pouco provável que cometamos os erros dum filósofo medieval, de maneira que o enfoque histórico que obriga a deixar as ideias num segundo plano, rara vez tem justificação. Anselmo definiu a ideia de Deus como algo maior do qual é impossível pensar. A hipótese historicista pretenderia que aprendêssemos isto para contornarmos o jogo retórico do argumento ontológico. Porém o maior que hoje podemos pensar não é Deus, mas a internet: o argumento ontológico parece um anúncio de Bill Gates.
Face ao historicismo, o Vir a menos ocupa-se do niilismo debolista. Ora essa! Só faltava que o niilismo tivesse apelidos. Segundo Brais Arribas, é uma negação da autoridade própria dum pensamento que voluntariamente se aligeira, se debilita; um pensamento que não quer carregar com o peso das verdades absolutas. Nem com a sua arrogância. Por se estiverem a sentir tentações, lembro para desaconselhar esta leitura que hoje quando alguém quer desacreditar algo, chama-o de pós-moderno. Todos os comités centrais já nos alertaram de que os pós-modernos eram péssimas companhias: evitam os absolutos, a Verdade com maiúscula, os pontos de referência sagrados. Pós-moderno é uma palavra que usamos como insulto. Vir a menos dedica muitas páginas a explicar pós-modernices. Querem mais razões para não o ler? A filosofia, quando for atual, perde toda a elegância.

Já indiquei que a filosofia tornou numa questão de estilo. Agora aduzirei este facto como quinto argumento contra a leitura de Vir a menos. Sinto-o pelos amantes da filosofia da ciência (ou da matemática, ou da mente), esses que não conseguiram tirar de si o complexo de serem “de letras” e se orientaram para os assuntos importantes, mas boa parte do saber filosófico foi transmitido através de metáforas poderosas. Kant criticou a metafísica como uma pomba incapacitada para mover as asas no espaço vazio, sem o roçamento do ar. Toda a história da filosofia poderia resumir-se num curso de literatura avançada. Por isso, como dizia antes, hoje tudo é um relato. O meu professor de filosofia na USC explicava o apeiron como uma pota de garavanços. Literalmente. Perdi o fundo da explicação, mas a potência da metáfora é tal que hoje quando preparo um guiso convoco os meus com a frase: “para a mesa, que o apeiron está a arrefecer!”. Somos uma família refinada e culta; devoramos o apeiron. 
Para explicar que a filosofia é um estilo recorrerei a uma confissão pessoal. Os filósofos franceses erotizam-me. Todos, sem exceções: Braudillard e Guattari, Ricoeur, o par Sartre / Camus, Deleuze, Althusser, Derrida. Todos. Talvez seja simplesmente por causa da língua em que está redigida que tem tanto sucesso a filosofia francesa: quanto mais abstruso for o assunto tratado num ensaio em francês, mais atrativo resulta. A filosofia francesa de todos os tempos compõe um subgénero da literatura erótica. Parece filosofia, mas na realidade é uma provocação, como a roupa interior dos sex-shops, desenhada para nos alterar a química, não apenas para cobrir o corpo. Essa reiteração de termos tenebrosos e inventados, esses jogos de palavras, essa obscuridade dos seus conceitos que faz pensar em eufemismos e, sobretudo, a forma em que a língua francesa obriga a colocar os lábios, com os seus “ou” e os seus “u”, só pode responder a uma intenção calculada: o pornoterrorismo. Quando vejo num desses textos pós-modernos um termo riscado, perante a dúvida de o ler ou não, sinto as pulsões do desejo, pronunciar desconstrução aumenta a minha temperatura corporal; com a não unidade do um hiperventilo e qualquer postulado pós-estruturalista predispõe-me invariavelmente ao orgasmo. Após esta evocação, devo comunicar que Vir a menos está redigido com uma sobriedade tristíssima: nem filosofia galega, nem francesa. O autor pretende rigor (empenhado em que tem que ajudar a pensar como se isso importasse a alguém); é exaustivo, pulcro, não necessariamente neutral, mas tenta que vejamos num jogo de transparências por onde transcorre o caminho que segue. Vamos ler para isso? Por favor, ao ler, esperamos algo mais excitante.

As outras cinco causas já não têm a ver com a filosofia em geral; são culpa exclusiva do livro.
A sexta é que Vir a menos exige leitura, uma atividade antiquada consistente em passar os olhos por signos escritos para decodificar uma mensagem complexa sem perder a atenção, a fiar conceitos que exigem vidas inteiras de dedicação (a de Arribas e as doutros) e tirar daí para analisar que é o que nós próprias levamos dentro. Porém, hoje ninguém quer saber o que leva dentro. É uma atividade extenuante que rouba muito do tempo maravilhoso que podemos dedicar a visionar vídeos de gatos ou de pessoas que caem em Youtube. O Vir a menos exige que negociemos com os nossos próprios pontos de vista, sequer momentaneamente. Se tão sequer a editora fosse séria, teria editado um vídeo. Custa tanto, realmente, meter isto num CD?

Assim chego à sétima causa: Axóuxere, a editora, não é um selo filosófico. Ao contrário, é um projeto excêntrico no pior sentido do termo. Os seus fundadores queriam que a cultura sucedesse (como quando formos a um concerto e vemos que aí está a se passar algo), não que reproduzisse. Levam anos a editar livros ferozes e formosos, com uma marcada preferência pelo pensamento, o que a torna em inimiga declarada da cultura galega. Acreditam em que a cultura ultrapassa o epidérmico e o puro ato de vender livros. Por isso organizam conversas em horizontal e residências de escritor@s. Contemplam a cultura como ação, como reinterpretação e modo de vida e isso impossibilita que os seus livros sejam recomendados em Leiden, em Harvard, em lugares assim realmente interessantes. Queriam situar-se fora dos grandes centros de irradiação e elaboram o seu work in progress em Rianjo, um projeto à medida das possibilidades do povo galego. Se Vir a menos fosse publicado por um selo filosófico, não ganharia nada, mas iria ver-se nas montras da feira do livro de Frankfurt (poderia ser filosofia alemã). Afinal, Axoúxere ainda não conseguiu que nenhum dos seus livros tivesse uma sala de culto na Cidade da cultura e com isso fica dito tudo.
Oitava causa: Vir a menos não procede dum círculo. É provável que encontremos no autor pegadas doutras vozes, influências. Algum saberá que foi integrante do projeto Derriba, que poderia ser apresentado como pensamento galego se não tivéssemos falado do oxímoro da denominação. Mas desse projeto nada sabemos já. Os círculos são imprescindíveis para o pensamento de altura. Neste caso, a cousa ainda piora porque Brais Arribas é investigador da Cátedra Internacional de Hermenêutica crítica (Hercritia) que, como seu nome indica, não é galega (só faltava que fosse filosofia espanhola!). Uns anos atrás, eu própria escrevi um ensaio de linha ecológica, O natural é político, que dialoga, acho eu, com En defensa dos animais, publicado recentemente em Axóuxere por Óscar Horta. Uma resenha chamou a minha atenção. Dizia “Moure clama no deserto”. Foi a única vez, que eu saiba, que um jornal escreveu a verdade. No deserto, no sentido social (ao tentar analisar a ética vegetariana), no sentido político (ao condenar a idealização do rural no galeguismo que, realmente, não valoriza a natureza, e continua a falar em setores produtivos) e no deserto editorial, se entendermos por editorial não que vende livros, mas que suscita diálogos. Nem na altura soube de Óscar Horta, nem ele do meu interesse pelo que era já a sua linha básica de investigação. Pensar sem círculo é desapropriado; um vício solitário. A ausência de círculos é também uma ausência de inquietudes desta sociedade por defender o pensamento próprio; uma mostra de apatia ou de falta de resiliência. Vir a menos mereceria vias poderosas de difusão. Como apresenta um pensamento pouco praticado na Galiza, pouco introduzido na universidade, nada debatido nos médios, daria a oportunidade de pensar por nós mesmos. Por isso, encomendo vivamente que não seja lido. Poderia fortalecer círculos.
Nona causa (a mais importante): a filosofia, entendida como saber morto, dialoga entre textos de autores egrégios do mundo civilizado, com as suas citas e as suas discussões. O curioso não é, como dizia alguma resenha destes dias, que Brais Arribas tenha uma definição de niilismo diferente do uso quotidiano. Existe de facto toda uma gama de aceções radicais e políticas do niilismo fora do seu uso como insulto para pessoas de ânimo negativo. O novelista russo Ivão Turguénev definia em Pais e filhos, um romance publicado em 1862, niilista como a pessoa que não se inclina perante nenhuma autoridade, que não aceita nenhum princípio como artigo de fé. Depois o niilismo foi adquirindo péssima reputação, mas só se tratava dum significado ofensivo para os conservadores e a sua briga pelo poder; para os revolucionários foi um sinal de identidade, bem trabalhado por Nietzsche. Na sua expressão mais atual convida a tirar peso do essencial, até do eu, convida a não tornar nenhuma presencia em transcendente. O curioso é que o filósofo Brais Arribas, o pensador Brais Arribas se atreva a exercitar a rebeldia de aplicar numa periferia esse pensamento a novos problemas, que se atreva a tratar do quotidiano. Vir a menos exige repensar a nossa bússola: que daremos por verdadeiro? Até onde seremos capazes de reduzir o nosso eu? Até onde aceitaremos reconhecer que nem sequer somos um eu e, portanto, a verdade que prediquemos dum enunciado será sempre mínima, sujeita a contextos, mutável? Deixo momentaneamente a ironia para confessar algo. Sou uma privilegiada porque li este livro muito antes de ser publicado e tive oportunidade de o desfrutar quando ainda era um projeto em construção. Talvez seja interessante para as pessoas que estão aqui saber que às vezes os livros são formas de amizade e estabelecem vínculos sagrados entre as pessoas. Eu era outra antes de ler Vir a menos. Estava enfrascada na escrita dum romance sobre a verdade onde uma filósofa Ana Brouwer, abandonava o ceticismo quando a enganavam na vida amorosa. Era curioso encontrar o Brais e o seu potente texto naquele momento. Demonstrava a ideia, que tenho defendido outras vezes, de que os livros escrevem as nossas vidas. Não podia ser. Se não houvesse verdades, de que maneira poderíamos orientar-nos? Num jogo interno com o Brais, escrevi para apresentar o romance de Ana Brouwer estas palavras: <<deveria ser proibido pronunciar parvoíces contraditórias como declinar verdade em plural, verdades, para lhe negar a singularidade, esse fulgor. O pessoal ofusca-se com a ideia de que tudo vale e instala-se na ficção de que a verdade é uma noção rígida, autoritária. Dessa maneira tira valor às referências que se mantêm independentemente de vaivéns (2+2 sempre somam 4), hipoteca o futuro, desalenta a transformação (que implica reconhecer o falso para o emendar) e privatiza a história (que será, quer a dos vencedores, quer a dos vencidos), renunciando ao relato fiel da opressão. A ideia de múltiplas verdades coexistentes evita o conflito de decidir e, portanto, mata a política e a criatividade. Perpetua a dor. Para além da inconsistência lógica: quem afirmar que todas as verdades são relativas, deverá concluir que essa, pelo menos essa, é absoluta>>. Porém, quando escrevia isto já estava ferida. Continuei para a frente porque não devia abandonar o meu projeto, mas o pensamento é isso, o caracol e a fenda: às vezes alguém atira sobre nós um texto que obriga a nos deslizarmos num ciclo sem fim sobre as nossas contradições. Que eu precise a verdade, sobretudo às noites, não significa que a verdade exista, não ainda. Com paciência, dessa maneira amorosa que o Brais coloca sempre nos seus argumentos, foi desvendando o seu saber e toda uma cátedra internacional de hermenêutica caiu por cima de mim. Fazer com que os nossos argumentos quebrem, se enruguem sobre si próprios para permitirem outros pontos de vista, para nos contaminar com vozes que, dizendo exatamente o contrário do que nós pensamos, também podem ter razão. Gostei dessa visão irónica sobre o próprio ego. Uma maneira de fazer prevalecer o nós sobre o eu na conversa, todos sabemos, é não humilhar o outro (e vou para a etimologia de humilhar, de húmus, terra, não permitir com que o outro dê com os focinhos no chão). Eu aprendera em muitas reuniões de militantes que a política está nos procedimentos; não se trata das importantes senhoras, as Ideias, mas da maneira em que as dançamos o que nos torna em democratas ou em autoritários. E de súbito vi que o Brais era um experto, não só na filosofia acadêmica, mas também na sua forma mundana − que inclui uma boa ética do cuidado −, um experto em se aceitar e em me aceitar, em sabedoria de vida. Admirei tanto Brais que entendi com ele que a filosofia hoje só podia ser interessante a olhar para as fendas. Vou deter-me porque o Brais está a se zangar: a minha tendência a abusar das palavras, sempre me pode. Teria que dizer simplesmente que o Vir a menos não está mal para ele ficar contente. Em resumo, não devem ler este livro em nenhum caso. Poderiam mudar, como eu mudei.
Décima causa: Há no livro uma parte didática, onde nos explica os trechos complexos da filosofia contemporânea com boas artes de professor, e uma parte de pensamento próprio que vai ligar essa autolimitação consciente à frugalidade do decrescimento. Isso é uma ousadia que leva o livro fora de qualquer interesse académico: nas universidades ufanamo-nos de não ensinar nada contemporâneo e nunca chegar nos programas ao século XIX!! E este livro, que talvez não seja neste curso leitura recomendada na faculdade de Maçarelos, é profundamente contemporâneo. Alegro-me de ter estado perto da gestação dum livro que não devem ler. Porque trata de filosofia, especialmente de ontologia e de ética, mas também de política, de análise do discurso e de sabedoria de vida. Um livro que não é cultura galega, evidentemente. Porque foi escrito na Galiza, publicado por uma editora galega que arrisca muito por fazer-nos chegar textos intensos e delicados como este, de vozes excêntricas; porque foi escrito por um autor galego e redigido em galego, e, como tal, um livro que não deve ser exposto no Gaiás, porque viria a ser ainda menos. Para ser menos que isto, teria que, por cima, estar escrito em norma reintegracionista. E então estaria definitivamente no mapa dos livros que nunca deveram ser lidos.


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