Prólogo a Zizek vai ao ginásio de Tiago Costa



Nunca acreditei em prólogos.
Detesto textos sobre textos – nomeadamente os que preparam ou apresentam, os que pretendem servir como aperitivo. Quem quereria ficar na tona quando puder ir para a carne apetecível do fruto? Digamos que sou uma leitora ávida, que sistematicamente salta os prólogos como se não os visse. Talvez, simplesmente, esteja desenhada para não gostar de aperitivos, mas do prato principal, o que realmente convoca. Nunca tomo coquetéis e, daí, que me recuse a ler prólogos, esses textos sobre textos que tencionam acariciar como preliminares. Já agora, também detesto o conceito de preliminares, que implica uma rutura nos movimentos, como se primeiro corresse a abertura e depois o concerto, como se tivesse de ser forçosamente assim. Habitualmente na vida tudo vai por junto, envolvido em camadas − é claro − mas indiscriminável. Portanto, estas palavras, no caso improvável de convocar alguém, devem ser ingeridas com a devida cautela porque eu nunca gastaria o tempo em ler prólogos.
Embora esta desconfiança inicial, hei de confessar que nunca tinha pensado assim muito no género. Não me importo com a sua condição secundária, com a necessidade de os prólogos servirem para aquecer os engrenagens da leitura. O problema radica, aliás, em serem um pre-texto, quer dizer, um convite dissimulado à maneira de desculpa, e, sobretudo, em serem textos para outro texto. Suspeito que escondem qualquer coisa de ignóbil: todo texto há de ser, sempre, para si. A literatura prologar, no entanto, tem vícios; tende a ser subserviente e ligeiramente publicitária. A Crítica, esse sagrado conjunto de textos sobre textos, chama os prólogos de para-textos. Esta é uma palavra realmente simpática, como todas as que começam por para − paralelo, paralelepípedo, parafarmácia, paranormal − que, como vemos, em certas oportunidades adotam um ar falaz, uma falta de autenticidade, porque uma parafarmácia não é uma farmácia verdadeira e, agindo em perfeita coerência, um para-texto, igualmente, não será um texto de verdade; será um outro assunto. Diríamos com todo o rigor que para-texto é uma palavra parassimpática.
Habitualmente, os para-textos são textos onde o eu se excede. Se calhar, sempre nos excedemos ao escrever, mas em particular, excedemo-nos neste género, o dos textículos – com licença. Devem ser textos pequeninos, que nos contenham, como essas dedicatórias que nos comprometem com o futuro − quantas vezes teremos desejado que o texto minúsculo duma dedicatória suma, após termos recebido a punhada da traição. Devem também ter um tom assertivo, como as didascálias, onde a dramaturgia coloca instruções para atores e atrizes agirem na devida obediência, tornados em servos do Autor. Porque quem assinar o prólogo está colocado na posição endeusada de alguém que conhece o texto antes que o público, que pretende ter já apanhado o tesouro. Com certeza, mente.
Decididamente, os para-textos não são simpáticos, mas paratáticos: colados às verdadeiras mensagens, subordinados e absolutamente prescindíveis.
Além do mais, visto que é difícil escrever um texto consistente, será absolutamente impossível escrever um prólogo que faça realmente sentido. Qualquer sentido.
Sento-me, irrequieta, a escrever o prólogo de Zizek vai para o ginásio. Tento abandonar-me ao imenso prazer de ler um poemário comovedor, estimulante que, às vezes, até faz com que sorria. Contudo, o prólogo não nascerá dessa vontade de me expressar que me move quando escrevo. Foi solicitado pelo autor, meu amigo, que talvez queira agradecer-me assim, com este caminhar de mãos dadas − o seu nome e o meu nome juntos para o sempre − , qualquer atenção; sei lá, a amizade segue caminhos de cabras, íngremes e acidentados. Contudo, permaneço alerta. Se errar no tom, até possível que se zangue (“olha, eu não disse tal”), se convocar os meus demónios na interpretação, irá sentir-se alheio (“se quiseres dizer isso, escreve teu próprio livro, não venhas cá lixar o meu”), se me detiver nestes detalhes antecipando a sua receção serei melindrosa, se fizer generalizações vagas conseguirei “esse prólogo que apenas escreveste por compromisso”.
Gostaria de ver os meus inimigos na situação de escreverem um prólogo de um livro de que gostam! Prólogos parecem ajustes de contas.
Nalgumas das leituras anotei nas margens: “Tiago Costa continua o percurso do Mecanismo de emergência. Revista com insistência a pesada carga da jornada laboral e, ainda pior, da ausência da tal jornada, as contradições do capitalismo, o ritmo circular do tempo para quem estiver a  vender a própria força de trabalho ou, ainda pior, a não conseguir vendê-la. O dia da marmota que se repete, mais uma vez, marca o ritmo dos poemas, que transitam do político para o existencial, e evoca a angústia sem cair no místico. São, sobretudo, poemas do abandono”.
Imagino a cara do Tiago: “oi, Teresa, e agora és crítica literária? Só tinhas que escrever um prólogo. Apenas isso”. Teria razão. Ele próprio apenas se sentara para escrever poemas. Apenas isso.
Quem escreve poemas e quem escreve prólogos não podem perceber-se. São dois seres irreconciliáveis e isso dá nas vistas do público. O primeiro é autônomo; o segundo trabalha por conta de outrem. Mora no espartilho que o autor dos poemas desenhou para si, tal qual o operário mora no convénio laboral que a moderna empresa desenhou para si. Não pode escapar do universo recriado, das convenções ditadas. Não deve.
Anoto nas margens: “É o seu tom irónico e o jogo deliberado com a fantasia que tornam a obra do Tiago Costa numa referência tão insólita como os empregados de empresas de mapas que nunca viajaram e que apenas conhecem a geografia do seu corpo e do seu telegráfico curriculum. Esse humor que goza de si, dos interrogantes, das dúvidas, das roldas que percorremos como cobaias evoca em mim o Afonso Cruz de Vamos comprar um poeta, onde o poeta é um luxo, um adorno adquirido como animal de estimação”. Detenho-me abruptamente. Será apropriado associar no prólogo os textos do meu autor com os daquele outro autor? Vou para o Google com a intenção de comprovar se estes escritores, ambos portugueses, aparecem juntos nalguma imagem. Encontrar um selfie deles num sarau ajudaria. Hoje nenhuma hipótese consegue abrir-se passo se não for com pé de foto incluído. Pesquisa impossível: não aparece uma mínima mostra com que documentar o meu atrevimento. Nada.
Ainda bem que nunca acreditei em prólogos, na capacidade de colocar um preliminar à palavra cuidadosamente selecionada e escrita. Porque Tiago Costa, com a sua perícia de ourives, traz para mim ressonâncias de autorias diversas: a mexicana Verónica Gerber Bicecci, a sueca Lena Andersson. Será ainda mais complicado conseguir provas fotográficas se me ponho assim tão evocadora. Estarei a insinuar que a sua, a do Tiago, é uma escrita feminina?
Anoto nas margens: “Ler Zizek vai ao ginásio é mergulhar-se num universo alternativo onde o peso dos labores e os dias é amolecido pela possibilidade de os poemas se apresentarem por si próprios a prémios literários e as palavras brincarem com quem as persegue. Esse universo nem por ser poético, medido na palavra e na mesura, deixa de ser narrativo. Muitas personagens são conhecidas para quem leu o Mecanismo de emergência. Os terrores que nos visitam na insónia também. E as ausências: volta o cordão umbilical rompido, a memória do menino, a adquisição do tato, aquele sentido imprescindível para os mamíferos”.
Na realidade, visto que não acredito na minha energia como prologuista, deveria armar-me em provocadora e convocar o próprio Zizek:
<<Querido Slavoj: és um grande pensador, um homem muito admirado, mas ninguém é realmente importante até o momento em que o seu nome começa a incentivar a imaginação de artistas. Já sabias que um autor portu-galego, que escreve em português na Galiza, precisamente o lugar onde o português nasceu e onde cresce nas bermas, colocou o teu nome no título da sua obra para nunca o citar mais? Podes valorizar o que isso vem a significar? Não está a usar-te como uma dessas referências cultas que os poetas deixam cair para fingir profundidade, embora logo as contornem rapidamente. Está a sentir contigo, a permitir-te ser a linha de fuga do seu retrato.>>
É evidente que, para além de não saber comportar-me nos prólogos, a rara arte de escrever emails também não figura entre as minhas habilidades. Porque iria tratar pelo “tu” o Zizek, como se já tivéssemos merendado juntos na beira do rio? Quando começo a substituir os “tu” pelos correspondentes “o senhor”, distraio-me um bocado e vou procurar na rede o endereço eletrónico de Zizek. Sempre me dizem que sou ingénua, mas estou a ultrapassar os limites do humanamente razoável. Consolo-me com a ideia de poder libertar-me de escrever um prólogo, um desses textos que ninguém vai ler, a estabelecer um relacionamento entre dois autores que admiro. Obviamente, não consigo contactar com Zizek.
Após tantas hesitações, venho de entender o sentido deste prólogo. A minha missão é escrever, em nome do Tiago, uma convocatória coletiva até darmos com o endereço eletrónico do filósofo: cherchez l’homme. Se alguém o tiver na sua posse, ou se alguém puder conseguir dos seus contatos, por favor, enviem. É assunto urgente para o Tiago, ou para mim, ou para mim e para o Tiago em simultâneo, contactar com Zizek. O que farei depois é incerto. Porém, enviem-me esse email, por favor. É possível que acabe por ter um caso com o pensador e o prólogo sirva para atividades estimulantes no logo, quer dizer, no capítulo principal da aventura que virá depois do pro. É possível que seja o Tiago quem se delicie com esse trato íntimo. Ou que qualquer de nós se atrapalhe numa correspondência filosófica de altura. Prólogo apenas significa antes da palavra e justamente antes de encapsular as ideias em palavras, nesse preciso instante, ainda tudo é possível, até nos perder num qualquer sábado sem inveja, deixar a vida e montar uma loja de segunda mão ou até chegar a um parque industrial num domingo à tarde, com as máquinas paradas, os armazéns fechados, os computadores obedientes e ninguém para ser subjugado. O poeta já avisou:

<<Antes de me conhecerem, devem conhecer primeiro as minhas palavras.
Então as palavras entraram na sala e o poeta ficou do lado de fora à espera.
No seu interior as palavras começaram a destruir o que havia à sua volta.
Aos saltos, sobre as mesas, gritando, despindo-se e com esgares de loucura
executado jogos do empurra com os presentes.
Tiveram de chamar a polícia.
Algemadas as palavras saíram da sala sobre o olhar cúmplice do poeta
que ali estava sentado na sua melancólica calma, proferindo:
se ainda desejarem, posso agora falar um pouco de mim>>
Porque as palavras contêm tudo: a denuncia e a citação, o relato e as suas feridas. E só após ter servido como terapia, como confissão, como insulto e como mordaça do pensamento, as palavras poderão contar quem somos. Só, nesse momento Zizek poderá ir para o ginásio tranquilo, a queimar calorias. E categorias. Só nesse momento, eu poderei libertar-me de explicar o que não saberia já dizer sem recitar o que Tiago Costa escreveu, e deixarei de ser prologuista para arranjar um emprego como tem de ser. Só, nesse momento, quem lê poderá ir para o livro e largar este prefácio que não serve. Porque não acreditamos nos prólogos.
E, talvez, tudo fosse mais rápido se conseguíssemos o telefone. O de Zizek.


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