A energia dos corpos celestes. A propósito de Corpo, de Antón Lopo
O poeta escolhe como título apenas uma palavra: corpo. Decide assim. E a
leitora cai na armadilha e intui uma tentativa de provocação. Finalmente, o
corpo, por definição, é inominável e inominado. Séculos de cristianismo
cobriram-no de vestimentas, regulamentaram as suas funções ─o quando e o como
delas─, até o extremo de entrarmos em trato com o outro evitando
especificamente o corpo, simulando que só nos olhamos do colo para cima, que
não valorizamos as formas e os volumes, a consistência, a disciplina a que
submetemos os músculos ou a suavidade da pele. Simulamos não sermos corpo
porque os moralistas advertiram que os corpos estão cheios de zonas proibidas,
e porque hoje até tememos com excessiva frequência atrever-nos a mais, ter
sugerido um contacto não completamente consentido; eis, sempre, o desacato.
Se caminhamos para o território das definições, corpo é tudo o que ocupa um
espaço e constitui uma unidade, orgânica ou não: o ser animal, vivo ou mesmo em
forma de cadáver, mas também a parte principal dos objetos, para não falarmos
nos usos mais metafóricos, relativos à consistência duma matéria, à sua
densidade (o elegante sabor dum bom vinho é também corpo). Ou, visto que
estamos a falar da escrita, corpo alude ao calibre dos carateres tipográficos e
até à cerna do que escrevemos.
Não acredito que a escolha do título seja inocente: o Lopo performer, o
Lopo que pousa inspirado para a câmara está a espreitar com o seu olho para
tudo quanto se move, na praia e noutros espaços. Já agora, o livro não é o que
parece. O poeta quer, acho eu, distrair a leitura, porque esta vez o seu corpo
─que não é, precisamente, a envoltura de Antón Lopo, mas o projeto que conduziu
para este livro─ é um território, físico e metafísico. Não necessariamente
erótico, embora contenha a despreocupação do prazer. Iniludivelmente. Vejam, a
modo de prova:
<<O descenso prodúcese/entre as bafaradas de calor/que recende a
pedra./ É un centro estacional de lecer/fóra de temporada,/ ainda que quedan
turistas/ paseando espidos pola noda. / Recollen cunchas, pedriñas brancas/ e
cristais erosionados [só cristais erosionados]/ Uns nenos xogan a facer muros /
contra o avance da marea / e logran por un tempo / preservar o seu território /
rodeados pola auga/ Pero a verdadeira alegría / a súa eclosión feliz / e cando
o mar soborda os muros / e quedan inundados. >>
Corpo a corpo, o poeta e a leitora encontram-se no texto e lá é
que ela percebe um catálogo de sensações e de micro-relatos à volta da angústia
pelo passo do tempo e do desejo de capturar o instante. Delicia-se neste corpo
e, portanto, o poeta consegue aquele objetivo último de conexão a que aspira
sempre o ato da escrita: derruba a fronteira dos corpos necessariamente
ausentes no ato de leitura.
Descobre, antes de mais, um corpo entendido como fronteira: a linha do
horizonte a se diluir nas orografias do bosque, pergunta o poeta, é horizonte,
linha ou bosque? Porque nada existe que brilhe tanto. O corpo é noda: esse
espaço na praia que ainda não é areia, que já não é água. Como conhece bem
outras obras do autor, esperava, talvez, um corpo ao estilo reivindicativo das
artistas plásticas feministas, um corpo ao estilo da Ana Mendieta, nos limites
entre a lascívia e o nojo da lama que a torna em árvore. Como conhece um bocado
a pessoa, esperava, talvez, um corpo a emanar fluidos, a produzir dissidências.
Nada disso. O poemário não faz concessões, não permite a quem quiser penetrar
nele refugiar-se nas citações cultas; não será possível escapar duma voz
marcadamente original, como é original sempre o corpo quando retira a roupa,
quando se revela. Tem contornos, silhueta: a marca do perfil próprio.
A meu ver, o mérito principal deste poemário está na construção duma voz
cindida, plural, que nos permite aceder a cenas diferentes e que dá ao livro um
ar de confidencialidade, às vezes, irónica; uma pluralidade de “eus” que evocam
a escrita feminina e as suas dissidências. Leio:
<<Imos ás praias que se estenden / pola costa sur da península / […]
Estamos lúcidas de verán / despois de que o verán acabase / e outubro disponse
a fabricarnos / unha tarde perfecta. / […] Ao mediodía, aliviamos a calor no
bosque. / Subimos a montaña / e os passeantes fálannos en baixo / para facerse
os interessantes, / cun cigarro apagado / que queren acender / mirándonos os
ollos. / Volvemos atras e practicamos / a ironia do riso / para non nos sentir
cómplices / Tombámonos sobre unha árbore / atravesada no camiño / e quedamos
dormidas./
Este que estamos a ler dalguma maneira é um corpo negro do espaço cósmico,
desses que absorvem as radiações que incidem sobre eles, sem refletirem
nenhuma. Quando digo isto, poderia parecer que sugiro falta de brilho. Não tal.
O brilho está em cada verso, trabalhado ao detalhe, escrupulosamente, com uma
riqueza formal que se consegue sem alardes: limpamente. Verso, claro é, despido,
algumas vezes até ameaçando a coerência. Corpo negro é só a minha maneira de
expressar a dificuldade de transmitir o que encontro neste texto. Os poemas,
como as brincadeiras, não estão aí para serem explicados. São. Sem mais.
Pequenas massas de palavra ou de matéria sideral, que podem oferecer-nos uma
imagem fugaz ou todo um universo. E estes poemas com frequência guardam um
verso cortado ao final, lapidário e filosófico: o corpo, neste caso, é
sobretudo um corpo celeste.
A leitura abre-se com um poema, “escisión”, que assinala para quatro
partes: a que olha e guarda na memória (o Lopo voyeur), a que se adverte no
peixe abissal (a sua intensidade), a botânica e fotossintética que gosta de que
a lambam (esse momento para a erótica) e a quarta, a que escreve, a única que
não foi definida. E, imagino, nem gosta de definições. Por isso continua com
dez poemas sem título que situam o espaço para esse corpo se revelar de vez:
<<Sempre nos sentimos a destempo / como estrondo dunha tormenta/que
ainda está lonxe / ou que se afasta./ Tarde ou cedo virá unirte a distancia/ ao
teu organismo/ Dirás: / así que era isto!>>
Contra o prognóstico fácil ─aquela hipótese de que com semelhante título
teríamos poemas eróticos e hedonistas─ a morte pressagiada reaparece uma e outra
vez, com certas ressonâncias do poeta galego Fran Cortegoso, a quem o próprio
Lopo editou e tristemente falecido. A morte é finalmente o único destino certo
desta envoltura que chamamos de corpo, que protagoniza as imagens da nossa
vida, que nos representa no mundo e que não controlamos nem possuímos. Não
completamente.
Ainda bem que o corpo nos segue, que berra, que comparte, porque o poemário
inteiro guarda uma obsessiva melancolia, uma nostalgia dos corpos não
visitados, dos instantes roubados à morte para celebrar a vida e para celebrar,
especialmente, as palavras que os lábios não saberiam dizer e que, no entanto,
devem pronunciar. O corpo do poeta abre-se para que o poema cresça e nessa
vagina exausta, que vem de ser evocada, chega o parto, o instante mágico da
criação poética.
A leitora, convocada a apresentar este livro, sabe que é inútil a tentativa
de limar a poesia, de fazer com ela tarefas de jardinaria para a simplificar e
conseguir que seja mais fácil de deglutir. A beleza do poema, a sua maneira de
condensar o cosmos está precisamente aí, na falta de explicação, na palavra
medida e precisa que os narradores sempre invejamos.
<<Quedan as cicatrices/ nas testadas boubas do corpo/ e a certeza de
que algunha vez ardeu/ totalmente a estrutura do edifício.>>
Como no caso do Mecanismo de emergência do Tiago Alves Costa, o
poemário parece surgido dalgum cordão umbilical roto. Um e outro texto semelham
dialogar entre si ou, talvez, só se trate de que a poesia apenas pode nascer
das feridas. Tenho a certeza de que o corpo voltará a arder. Por muito que o
poeta se resista. A pele não tem memória e tem que render-se à sua condição de
pele: sensitiva.
<<Un corpo pode concibir a ruptura / escribila e construila/ sen que
nada cambie nel/ Pode escindirse, identificarse / e quedar en silencio. Pode/
contradicirse na sua obra e percibir a transparência do reflexo/ coa man
espectacular do conforto/ pero a mutación é material / ou imposíble.>>
O dilatado espaço que o óbvio ocupa nas nossas vidas, a ternura do caos, a
impossibilidade de caminhar para trás, a alegria do amanhã e essa dose medida
de violência criativa são as bases desse Corpo:
<<Carecería de utilidades como metal. / Se fose gas resultaria
inestable / [estouraria en condicións imprevisibles]/ Inflamable se fose un
líquido;/Arderia: /seria abrasivo:/ non deixaria ósos.>>
Porque em si próprio, assegura Lopo, o
poema também não é exatamente texto e o corpóreo não é tanto distância como
aproximação. Ganhador da última edição do prémio Lueiro Rey, este corpo de Antón Lopo é denso e
eloquente. Tem silhueta: uma energia em forma de aura que é, finalmente, o que
dá a cada corpo o seu ser particular.
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