O nome extremo N(adie) D(uerme) de Xina Vega
Vou referir-me à mais recente obra de
Xina Vega como ND, sem mais. Só as letras iniciais. Isto em linguística
chama-se um acrónimo, como OTAN ou LASER, uma palavra que se forma sobre as
iniciais doutras. Mas a etimologia não deve ser esquecida: acrónimo vem do
grego ákros, “extremo”, e ónoma, “nome”. Permitam-me,
portanto, um nome extremo para começar. Porque ND, de Xina Vega, é um texto
extremo. E também contundente, selvagem e subversivo. Tento por um momento
repensar se estas são as palavras justas para o que quero expressar, controlo a
leve hesitação que me produzem adjetivos tão fortes quando aplicados a uma
novela fora de géneros, fora de modas, fora de pautas. Decido não mudar nada e
continuo.
Como leitora, tive oportunidade de
experimentar uma primeira prova, um teste premonitório do que haveria dentro ao
contemplar a capa. Finalmente, é para isso que as editoras nos presenteiam com
esses envoltórios dos livros; para anunciar o livro antes de, como avaliamos a hipótese de consumar com um
amante durante os preliminares. E Pepitas de Calabaza presenteia-nos em ND com
uma performance vigorosa, que, se fosse ser exposta num museu, haveria de
intitular-se “lâmina de barbear sobre fundo negro”. A capa simula ser aquele
cartaz do filme de terror que olhámos alguma vez na entrada do cinema. Também o
título, esse que eu teimo em abreviar como ND, insiste no matiz assustador. Não
se trata duma concessão ao marketing; no texto tudo será ainda mais turvo, mais
forte, apavorado. Cortaram alguma vez a pele com um papel? Pergunto porque se
trata duma dor peculiar. Com certeza, não é a dor implacável das enfermidades
graves, nem o padecimento geral e diverso de quem sofreu um atropelo, também
não a dor surda da depressão. Consiste apenas em sentir que o papel tem dentes,
ou se comporta como se tivesse dentes. Pois bem, também ND tem dentes: corta.
Quando lerem, hão de ver que é certo. Corta e corta-nos. Por dentro.
Poderia começar por dizer que a mais absoluta solidão está instalada entre
as personagens. Não importa se estabelecem algum tipo de relacionamento −uma
conversa, sexo−; neste universo fechado e claustrofóbico comunicar com o outro
é uma ilusão, um episódio fictício. Apenas é possível penetrar e ser penetrado
durante um momento; não sonhemos. Na primeira página, ela e ele fazem contacto
simplesmente por terem coincido no mesmo espaço. Um ser entra no campo visual
de outro ser. Sem vontade, sem sentimentos nem escolhas. As personagens são
convocadas para um absurdo encontro com outros corpos; nunca é permitida a
intimidade. Porque a intimidade precisa dalguma energia além dessa maneira de
partilhar fluidos. Ela vem de fechar uma porta de entrada a outro, uma metáfora
para o aborto. Vem, portanto, dum território onde o não-ser se fez verdade; é
uma fêmea dominada por hormonas que só dificultosamente pode tornar-se em
amante. Vem de fechar a porta, para continuar com o seu passado acima; uma
carga pesada, devastadora.
Mas também, no meu ofício de
apresentadora, poderia olhar para o formal. Declararia então que a
palavra sangue aparece 17 vezes. Tive que ir para o texto
e contar. Ainda é possível que no meu reconto esquecesse alguma; reconheço que
é arriscado utilizar um dado como este. Porém, era imprescindível. A primeira
vez que li ND surpreendeu-me essa reiteração: a autora cuida muito a escolha
léxica; se toda reiteração significa, esta tão voluntária, tão inesperada nela,
tinha de ser um manifesto. É por isso que me entreguei a uma segunda leitura
onde apenas procurava as aparições da palavrinha. Se acrescento que li três
vezes, já terei tudo dito porque nunca lemos três vezes um texto desamanhado,
um texto que não nos fascine. ND contem 17 vezes a palavra sangue, isto sem um
assassino em série que o justifique. São muitas ocorrências, mas necessárias
para a autora nos obrigar a ver simultaneamente o fluido menstrual, o que
percorre as vísceras, o que mana das feridas na violência e o que põe tesos os
pénis. Sempre o mesmo sangue.
Com este mínimo exemplo, pretendo ilustrar como Xina Vega se delicia nos
aspetos materiais da existência, no obsceno, nos pormenores, nas substâncias
recônditas que nos constituem, nas vísceras e líquidos que somos, nas suas
texturas viscosas e suaves, prodigando à descrição do feio uma desmesurada
atenção de calígrafa. ND poderia ser literatura forense. Isso sempre que a tal
literatura forense que venho de inventar fosse considerada um género artístico.
As personagens nem nome têm; são apenas
corpos despidos sobre a mesa e a autora entrega-se a uma autopsia assética e
desapaixonada, nunca despiedada. Se eu fosse mais propensa às etiquetas, se não
detestasse as etiquetas todas e o afã categorizador que inunda a crítica e
outras práticas leitoras, diria mesmo que se entrega a um exercício de Dirty
realism, embora a sua visão do mundo esteja mais próxima de Carson Mccullers do
que dos exemplos clássicos do género, como Bukowsky. Surpreende-me que essa
filiação não apareça na contracapa, onde a editora declara “Sordidez e poesia,
uma visão enferma onde ressoam as vozes de Bataille, Lorca, Koltés, Volodine,
Jelinek, Liddell, Perec, Cunqueiro”. Bom, a voz de Xina Vega é mais sórdida do
que a de Lorca, está mais perto de Jelinek e, a meu humilde ver, ligar
Cunqueiro com o sórdido é até um bocado destemido. Mas sim vincularia esta
Xina, bastante diferente doutras entregas prévias, com as vozes literárias que
resumem a angústia num palavrão. O relato mantém incólume um bramido feroz,
dorido; esse monstro duma das vozes protagonistas que “quer que o homem a
violente com a sua força, com o seu peso, quer que a castigue, quer que o ato
doa, quer que a rebente”. Daí, desse interesse forense pelas causas do
deterioramento, que apareçam as barrigas inchadas, o sémen, o esterco, as
personagens que se irmanam a mijarem juntas, os lodos fermentados num relato
despudorado, por vezes violento, trespassado de referências literárias. Dou um
exemplo, o daqueles gatinhos assassinados, como tantas vezes, ao nascer, que
berram nós também navegamos. Escrito em espanhol, ND contem,
como esta, várias citações da literatura galega. Não me passa inadvertido,
também não, esse “desejo de desaparecer, de ser tragada, devorada, digerida
pelo lobo”, que acho vagamente familiar. Os forenses amam o detalhe: lá é que
trabalham. Como os ourives. Eis, a sua força; o tamanho descomunal das suas
artes.
Creio reconhecer algum fragmento, talvez
o germe deste texto, num conto que Xina Vega publicou com a Através numa
escolma de relatos eróticos de autoras galegas, Abadessa
ouvi dizer, onde eu também participei, e sorrio: escritoras são
aranhas que tecem telas suavíssimas, invisíveis. Alegro-me de ter tecido com
ela, como de ter lido três vezes: é o número de visitas que recomendo para este
texto proteico, fecundo, duma beleza devastadora.
ND é uma novela duríssima, profunda, sangrante e redonda. Narra, sobretudo,
a angústia do tempo, porque as personagens estão atormentadas por trespassar a
fronteira da idade e procuram um refugio efémero nos sentidos, no seu aroma a
magnólia, galão de noite, jacarandá, cravo e canela.
A autora, uma prestigiosa e premiada escritora galega, publica nesta
ocasião o original em espanhol. Não era leitura para colegiais, portanto parece
que não cabia nisso que chamam o sistema literário galego. Observo uma certa
dor, nessas referências geográficas que convocam uma Galiza próxima, nessas
citações da literatura galega; uma dor causada, acho eu, por esta exclusão que
muitos poderiam interpretar como um desejo legítimo da autora de ir na procura
doutros públicos. Eu interpreto-o só como uma exclusão. O sistema literário
galego expulsa quem se atreve a produzir textos que não encaixam nos pequenos
esquemas do que se pode publicar hoje na Galiza, quer dizer, do que pode ser
leitura obrigada nos liceus. E sinto-me cruzada por essa aranheira
sociolinguística que ambas as duas transitamos, de maneiras diferentes, mas que
nos torna igualmente, figuras incómodas.
Como intuo a dor que lateja na decisão
de publicar este texto em espanhol, calo com respeito. Obviamente, acho ótimo
que o excelente catálogo de Pepitas de calabaza inclua
este texto extremo, que harmoniza bem com outros textos extremos que têm
publicado. Mas para mim será apenas ND. Para não pronunciar as palavras do
título (“Nadie duerme”) que seguram esta novela à literatura em língua
espanhola e não à literatura em língua galega. Para convidar a autora a
continuar onde tem que estar. Porque precisamos dela.
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