Perante o colapso da civilizaçã industrial: o olhar de Manuel Casal Lodeiro
* Texto para o lançamento na feira do livro da Corunha
Quando
há já oito anos eu publicava um outro ensaio: O natural é político, algum
crítico saudava-me desde esse faro que é La voz de Galicia para dizer Moure
clama no deserto. E tinha razão. As dificuldades para se abrir passo uma
conceção rebelde da ecologia e do respeito pela natureza na sua integridade são
evidentes. Mas pertencemos a essa tribo: a das pessoas que gostam de dar voltas
aos problemas para lhes encontrar alguma solução ou para estar prestes em caso
de que os acontecimentos se adiantem e nos caiam todos por cima. Nestes anos,
plumas eminentes da Galiza, como Carlos Taibo, ou Xoán Ramón Doldán, para além
do próprio Manuel Casal Lodeiro têm dado vozes de alarma bem argumentadas... e
pouco sucedidas. No território espanhol, Xosé Manuel Naredo, Jorge Reichmann ou
Marta Tafalla incorporam a esse panorama visões informadas da economia, da
sociologia ou da ética. Às vezes também se atrevem a animar com esse fundo
ideológico do decrescimento relatos, poesia ou romances inteiros. O tema é todo
um desafio porque questiona o nosso mundo mas também questiona os limites das
nossas ideologias, também das transformadoras.
Se
algo ainda pode transformar este mundo são as ideias. Revisem, portanto, o meu
primeiro aviso e acheguem-se ao livro. As ideias podem mudar o que há por algo
melhor mas para isso cumpre enfrentar-se a elas com uma máquina inferencial,
não com prejuíços. Anos atrás, Rajoi dizia que o seu curmão de Sevilla contava
vai lá saber qué sobre a mudança climática. Hoje todas sabemos que é evidente.
Igual que é evidente que comemos alimentos agredidos pela indústria
farmacêutica, que respiramos ar de pior qualidade, que moramos em urbes
inabitáveis ou que as nossas vidas apressadas podiam ganhar em qualidade com
outros usos do tempo. E que tudo isto é política também. Quando as ideias
marxista-leninistas sobre a propriedade foram formuladas, tinham um precedente
narrativa: o relato cristiano já dizia que antes passa o camelo por uma agulha
que entra um rico nos céus. Agora que as ideias decrescentistas têm certo pulo,
também há um precedente narrativo: os relatos de ficção científica que
auguravam o fim do mundo conhecido. Uns e outros relatos marcam os limites do
que queremos transformar.
Levanta-se o pano e o que
vemos é uma mulher que alugou vários solares na grande maçã de New York. Embora
pareça mentira, não pensa especular nem arranjar negócio nenhum. Decidiu semear
trigo e há de passear pela sua leira com seu cajado, como qualquer camponesa.
Essa mulher é uma artista plástica contemporânea. Não se importa de se as suas
obras cotizam caras no mercado da arte, de maneira que talvez não se importe
também não de se pronunciamos hoje cá o seu nome. Em todo o caso, chama-se
Agnes Denes e em 1982 performava uma obra singular: O campo de trigo. Subtítulo
A confrontation.
A arte consiste para ela no
ofício que a natureza realiza do começo dos tempos: fazer medrar a semente e
dourar as espigas. Porém, era tal a quantidade de metais pesados do subsolo que
esse cereal, após a colheita, não conseguiu que as autoridades sanitárias
permitissem que se tornasse artigo de consumo. Cultivar trigo no centro de Nova
York é uma excentricidade, uma provocação... e com isso basta, ainda que não dê
de comer aos esfomeados. É bastante com que a estátua da liberdade fique
abafada de pão.
Decido-me por esta imagem
plástica da confrontação do campo de trigo para apresentar nesta tarde de Feira
do livro A esquerda perante o colapso da civilização industrial de
Manuel Casal Lodeiro na versão para o espanhol que se vem de editar sob
chancela de La oveja roja. Faço assim para provocar à leitura porque este não é
um livro fácil, desses que se vendem nas feiras. De entrada estamos perante um
ensaio, um livro então relativamente denso, que nem sempre é o melhor para a
praia. Primeiro aviso: estamos perante as ideias, essas senhoras difíceis de
quem tanto teme o poder: quem é? Pergunta o poder. Somos nós, as ideias,
respondem elas. Podem entrar, se permanecerem caladas. Segundo aviso: estamos
perante ideias das mais incómodas. O livro de Manuel Casal Lodeiro –Manu
Casdeiro como também é chamado nas redes sociais– invoca um conceito incómodo
na civilização da tecnologia: o do decrescimento.
Terceiro aviso: se
quiserem permanecer tranquilamente onde estão, se quiserem não pensar, não
leiam este livro. Porque se o abrirem, ao percorrerem as páginas, hão de
encontrar um arsenal de argumentos suficiente como para mexer a comodidade em que
nos movemos, como para convocá-los ao fim duma etapa e ao início da seguinte.
No momento histórico que estamos a viver, quando a crise sistémica do
capitalismo demanda acharmos novas vias para instaurar sociedades justas e
livres, a reflexão ecológica faz-se mais necessária que nunca. Uma sociedade
fundamentada na exploração da natureza e das pessoas e na mais agressiva
competência só pode acabar por destruir o planeta. A ciência, por muito
asséptica que quiser construir-se, leva décadas advertindo de que a mudança
induzida no clima, o buraco na capa de ozônio, o crescimento desmedido das
urbes e o modelo abusivo de consumo energético são problemas tão urgentes que
podem desembocar numa catástrofe. E, se a vida tal e como a conhecemos está
ameaçada, cumprirá remexer as consciências dormidas para revisarmos as nossas
relações com o médio natural. A questão exige um alto nível de compromisso
político, ético e individual.
Manuel
Casal Lodeiro neste livro que não devem ler, demonstra uma atitude de forte
compromisso, que não se satisfaz num projeto para aplicar desde as
administrações e devo confessar que concordo plenamente. Acho imprescindível
criar uma cultura política que permita às pessoas participarem autonomamente
nas mudanças econômicas, socio-culturais e de sensibilidade vinculadas à nossa
relação com a natureza. Promover modos de vida alternativos é tanto como
melhorarmos a qualidade da nossa existência, individual e coletiva, e
contribuirmos a salvar o planeta. Mas isso implica deslocar toda a nossa
imaginação e a nossa força de trabalho para o serviço deste objetivo
prioritário, repensando o papel da ciência e a tecnologia, os hábitos de
consumo, o modelo de lazer ou os transportes. Noutras palavras, a situação
demanda que nos atrevamos a modificar as nossas existências para um benefício
conjunto, carregando com uma boa dose de autocrítica e assumindo que muitos dos
nossos costumes podem precisar revisão. Porque, noutro caso, confiando apenas
nas medidas "verdes" da política institucional, não temos muito tempo
por diante. Não podemos esperar leis promulgadas pelos parlamentos numa direção
ecologicamente transformadora sabendo que o poder tende a estabelecer
cumplicidades com o capital e a aceitar a "sustentabilidade" no
sentido superficial de maquilhagem que não questione a ordem de cousas
estabelecida. A transformação social, necessária, surgirá de construirmos uma cultura
política ecológica de base popular, amparada no desejo coletivo de resistirmos
frente à globalização e, sobretudo, marcadamente decrescentista.
Boa parte da povoação, anestesiada pelo consumismo
e as pressas que fazem parte essencial da nossa cultura, considerará as
propostas de Casal Lodeiro como mais um manual de medioambientalismo. A
conceção, bem extensa, de que a sensibilidade ecológica é uma teima de minorias
mais ou menos contestatárias ou declaradamente hippies e que não correspondem
com o núcleo da política – destinada a administrar a riqueza e a proporcionar
postos de trabalho – deve ser
erradicada. Nem este é mais um manual, nem é medioambientalista, nesse sentido
de domesticado pelo poder, de movimento light que confia em que reciclando e
comprando produtos com etiqueta de verdes já cumprimos com as nossas obrigas.
Decidirmos a energia que devemos usar -quanta e qual-, igual que modificar as
nossas atitudes para o uso da água, a quantidade de carne que comemos, ou o
valor imaterial da paisagem é revoltar-se contra uma ideologia destrutiva, que
se instalou em Ocidente com o capitalismo e que nos últimos anos está a assolar
o planeta inteiro, enquanto se populariza a ideia de que nada chega: o que
podemos chamar o simulacro da escassez. Porém, tirando à luz os agentes
interessados em gerar essa insatisfação, é possível decidir quais dessas
supostas necessidades são, na realidade, supérfluas para, a seguir, prescindir
delas. Limpamente.
Após ternos explicado num volume prévio que o
petróleo tem dias contados, agora convoca-nos para a criação de espaços
políticos com massa crítica. Nos inícios do século XXI, o impacto ambiental do
sistema energético galego é fortíssimo. Embora sejamos uma nação pequena e não
mui rica, contribuímos consideravelmente ao problema global do aquecimento
porque a energia que consumimos depende enormemente ainda da queima de
combustíveis fósseis e o nosso consumo de energia per capita é bem superior à
quantidade que o Informe sobre o Desenvolvimento Humano estabelece para uma
vida digna. Isso significa que os mitos do país apegado sentimentalmente à
aldeia, bucólico e não industrializado podem questionar-se: vivemos como o
ocidente consumista e temos que nos parar a reflexionar. Gosto de que, por fim,
se encete um projeto como este desde Galiza porque as nações não são unicamente
laços históricos: também são espaços físicos povoados por bichos que se movem
dum lado a outro, paisagens e materiais inertes que nos constituem e para os
que às vezes não reservamos outra palavra, mas “recursos”, bem indicativa de
estarmos a participar da secular óptica de domínio que estas páginas do guia
também querem denunciar.
Casal Lodeiro tenta preparar-nos para habitar um
mundo distinto, um mundo onde não é aceitável mantermos aquecimento doméstico
que nos permita estar em camisola de manga curta em janeiro, um mundo onde não
se veja lógico apanhar o carro e marchar onde queiramos sem valorar os custes
desse movimento. As inovações técnicas não solucionarão todos os nossos
problemas se a energia que nos afixemos a gastar alegremente não vai durar e as
fontes renováveis implicam outros ritmos, outro jeito de vida. Neste ponto
começamos a pensar no planeta como um conjunto de seres envolvidos na biosfera
-e não sob a imagem de corpos ao nosso serviço que foi expandida desde o
cristianismo até a expansão do capitalismo-, adotando medidas concretas, como
limitar o uso da energia, ou restringir as cabeças de gado, que exigem
demasiada terra e contribuem ao aquecimento para satisfazer um consumo de
proteínas insano e desaforado. A agricultura ecológica fala de cultivar a terra
com arado, isto é, o mais superficialmente possível para não a esgotar, ou de
que os animais possam viver em liberdade para contribuir à vida com os seus
serviços ou produtos numa relação entranhada. Porque, consumindo-os ou não, que
nisto há muito que debater, conviria evitar a sua conversão em simples
mercancias. Neste contexto, cumpre também encher com formas de prazer
alternativo parte do tempo que hoje investimos em consumir, primando atividades
lentas, que reduzem o tempo disponível para outras mais contaminantes.
Igualmente, comprarmos produtos caros de boa qualidade ou bons para a saúde,
como os produtos biológicos, impede que gastemos em produtos nocivos e contaminantes,
que alimentam a nossa vontade de consumir mais. Porque a atual obsessão pelo
consumo é o principal problema e, nesse sentido, adotarmos uma existência
frugal, que se contente com o necessário, supõe um problema para o capital,
para além de criar indivíduos independentes e livres. Podemos fazer que outro mundo seja possível.
Quando fizemos o lançamento da versão em galego
deste livro em Compostela, o ato durou mais de 3 horas. Este é o quarto aviso.
Livros como este marcam os limites da esquerda. Eu perguntei naquele ato
quantos secretários gerais de organizações marxistas acudiram. Era uma
capatatio benevolentiae porque eu, que os conheço todos, já sabia que não
estavam. Digamos que o mapa da esquerda, bem que removido nos últimos anos,
continua a manter o grupo ortodoxo ML e os heterodoxos que vou chamar hippies
comeflores. Ambos os grupos julgam que são mutuamente irreconciliáveis. E este
é o principal problema. Os secretários gerais MLs não hão de ler este livro.
Continuam com a defensa dos setores produtivos e consideram que o decrescimento
é um costume burguês, próprio de quem tem tudo. Os hippies come-flores, no
entanto, sim leem este livro, mas são menos eficazes na hora de se organizarem:
tendem a improvisar ou a irem à solta. Por isso eu, quando recebi de Manuel
Casal Lodeiro, a honra de prologar o seu livro escrevi umas páginas como
prólogo sob o título: Descrescimento também para marxistas.
Se
algo ainda pode transformar este mundo são as ideias. Revisem, portanto, o meu
primeiro aviso e acheguem-se ao livro. As ideias podem mudar o que há por algo
melhor mas para isso cumpre enfrentar-se a elas com uma máquina inferencial,
não com prejuíços. Anos atrás, Rajoi dizia que o seu curmão de Sevilla contava
vai lá saber qué sobre a mudança climática. Hoje todas sabemos que é evidente.
Igual que é evidente que comemos alimentos agredidos pela indústria
farmacêutica, que respiramos ar de pior qualidade, que moramos em urbes
inabitáveis ou que as nossas vidas apressadas podiam ganhar em qualidade com
outros usos do tempo. E que tudo isto é política também. Quando as ideias
marxista-leninistas sobre a propriedade foram formuladas, tinham um precedente
narrativa: o relato cristiano já dizia que antes passa o camelo por uma agulha
que entra um rico nos céus. Agora que as ideias decrescentistas têm certo pulo,
também há um precedente narrativo: os relatos de ficção científica que
auguravam o fim do mundo conhecido. Uns e outros relatos marcam os limites do
que queremos transformar.
Retirem os avisos porque
eram uma captatio benevolentiae para descridos. Leiam este livro e, se não
concordarem, entrem em diálogo com o seu autor. O mundo está em marcha e a
literatura não está para o deter, mas para impulsar o fio do pensamento.
Talvez alguns pensem que
não deveria apresentar-se este livro, em espanhol, numa feira do livro galega.
Talvez eu mesma tenha tido algum problema para aceitar estar cá. Mas é positivo
que as editoras espanholas saibam que estamos e que podemos trabalhar com tanta
dignidade como para sermos traduzidas. A literatura galega nasceu no ensaio.
Sem os milhares de assinantes que, na Galiza rural dos primeiros anos do século
XX, promoveram o jornal A nossa terra, sem os projetos editoriais das irmandades
da fala ou de Angel Casal, assassinado pelo fascismo, não teríamos conservado a
língua, que se manteve precisamente através da criação de ideias próprias em
galego e para o mundo (logicamente versionadas depois em diferentes línguas).
Mais um motivo para ler: dignificar a tarefa calada, de formiguinha de autores
como Manuel Casal Lodeiro.
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