Um manifesto político em Galeguia (antes chamada Lusofonia) de Manuel Miragaia
Numa entrevista publicada em Jornalirismo, o escritor angolano Pepetela expressava a
suas profundas reticências relativamente ao o termo lusofonia, com que se denomina a união dos países de
fala portuguesa: “é um mito forjado há pouco e que não vai ter grandes frutos
se se continuar em insistir que o que nos une é só a língua”[1]. Precisamente, como alternativa surge a
etiqueta galeguia, que remete para as origens históricas e
coloca em foco a Galiza, banindo o capítulo colonial que explicaria a situação
alargada da língua hoje no mundo. A tentativa não era, contudo, pioneira. O
termo galeguia fora já proposto por Luís Ruffato no VIII congresso da
Associação Internacional de Lusitanistas em 2005 e, como indicava Bruno Góis[2], a brasileira Adriana Lisboa, os
portugueses José Luís Peixoto e Possidónio Cachapa, o angolano Ondjaki, o
timorense Luís Cardoso e os galegos Quico Cadaval e Carlos Quiroga mostraram-se
favoráveis a esse neologismo. Em 2014, a cantora Aline Frazão, também angolana,
reivindicava novamente a etiqueta e, como se sabe, as opiniões do pessoal da
música influem especialmente na sociedade. Aliás, Aline Frazão julgava que era
uma maneira elegante de esquivar o inominável, a colonização, para num apelo à
concórdia, neutro e unificador, apanhar a unidade das variantes espalhadas pelo
mundo[3]. Logicamente, as suas palavras tiveram
grande eco na Galiza porque ressumavam afeto por esta terra:
NÃO HÁ TERRA COMO A GALIZA, NÃO HÁ GENTE COMO A GALEGA. QUEM, DOS QUE
FALAMOS PORTUGUÊS, JÁ FOI TOCADO PELA GENEROSIDADE DESSE CANTO DO PLANETA, SABE
DO QUE ESTOU A FALAR. DO BRASIL, PERGUNTEM AO CHICO CÉSAR OU AO LENINE. DA
GUINÉ, PERGUNTEM AO MANECAS COSTA. DE ANGOLA, PERGUNTEM AO PEPETELA OU AO
ONDJAKI. EU MESMA VIVI EM SANTIAGO DE COMPOSTELA UM ANO, ONDE CULTIVEI SÓLIDAS
AMIZADES E PROJECTOS PROFISSIONAIS (LÁ GRAVEI O MEU PRIMEIRO DISCO), VIVENDO
CADA DIA EM PORTUGUÊS. A MANEIRA COMO SOMOS RECEBIDOS NA GALIZA ULTRAPASSA
QUALQUER DEFINIÇÃO DE HOSPITALIDADE. FALAMOS A MESMA LÍNGUA E ISSO NUNCA TEVE
UM EFEITO TÃO SURPREENDENTE, TÃO CARINHOSO. MAS ESTE É AINDA UM VÍNCULO
ESCONDIDO, UM LAÇO INVISÍVEL, UM NAMORO SECRETO QUE DEVE SER ASSUMIDO
OFICIALMENTE E BRADADO AOS SETE VENTOS. […] VAI SER QUE, AFINAL, NÃO FALAMOS A
LÍNGUA DO COLONO: FALAMOS GALEGO DE ANGOLA, COM O SABOR BANTU DO ATLÂNTICO-SUL.
O recente livro de Manuel Miragaia pode
ler-se como um contributo a esta guerrilha da comunicação que demostra as
colisões internas dos átomos, as suas fricções e roçamentos, numa língua que
ocupa o sétimo lugar entre as mais faladas do mundo. O autor intitula
precisamente o seu poemário Galeguia (antes chamada
Lusofonia) e Manel Cráneo, o seu potente ilustrador, propõe
como capa uma casa de pedra em cuja porta, uma labrega galega, com socos e
chapéu de palha, figura acompanhada dum preto e dum indiano do Brasil. As três
personagens têm qualquer cousa nas mãos: a galega um pão, o africano um globo
terráqueo e o brasileiro um forcado de duas pontas. Mas ainda falta um
elemento: ao pé deles três foi colocado o galo de Barcelos. Portugal é apenas
representado por um objeto simbólico, como se quisessem transmitir-nos que a
força libertadora do grupo descansa n@s oprimid@s. Ainda bem que a editora
Chiado, portuguesa, reserva como logótipo um pequeno círculo onde figura o
próprio Pessoa; noutro caso até poderia parecer um agravo contra Portugal. Não
tal. Porém, antes de tomarmos posicionamento num debate que se apresenta
polémico, importa é dizer que este livro nasce duma ferida.
As feridas podem ser múltiplas. As mais inofensivas são chagas minúsculas
na pele que deixam o tecido interno à vista. Lavamo-las cuidadosamente;
cobrimos as feridas com um apósito e confiamos em que curem. Porém, algumas são
mais profundas: procedem de grandes afrentas com a sua carga de dor e
humilhação. Na descrição habitual, indica-se que os ferimentos são feitos por
utensílios, por armas ou por comportamentos simbólicos. Quase sempre é
esquecida a palavra como causa da ferida. É frequente escutar numa discussão
que tal ou qual aspeto constituem apenas uma questão terminológica. Quem assi
falar está a suster que as palavras são tema menor, que estorvam porque
escurecem os conceitos. Quem assim falar está orgulhoso de não ser suscetível.
Situa-se por cima das emoções; situa-se na magnífica ingenuidade de Leibniz
que, quando uma vez propus um sistema de comunicação artificial, estava certo
de poder escapar da ambiguidade e a vaguidade das línguas humanas,
presumivelmente defeitos, e ainda de superá-las com um sistema da sua invenção.
Leibniz era, sem dúvida, um homem seguro de si próprio. E um bocado ingénuo,
visto que considerava que com o seu artefacto permitiria desvendar quem de
entre os participantes num debate teria razão porque com uma língua lógica e
perfeita chegaria um momento em que o equivocado simplesmente não poderia
construir a seguinte frase. Porém, muitos de nós, muitas de nós, em particular,
somos suscetíveis. O feminismo, por exemplo, foi elaborando um relato potente
sobre a falta de inocência das palavras. E o mesmo pode dizer-se de todos os
movimentos subalternos. Ser oprimido implica sempre adaptar-se aos conceitos e
valores do opressor, renunciando aos próprios: isto serve para o relato de
classe, para o relato de raça, para o relato de género e para quaisquer outras
diferenças. Daí que Manuel Miragaia empreenda nesta entrega poética uma
reescritura da história, através da língua comum. Todo um repto.
O desafio de Manuel Miragaia é praticado
sem concessões num repasso pormenorizado a diferentes figuras da história
preteridas ou invisibilizadas. O monte Medúlio −aquele episódio mítico onde até
as mães envenenam os filhos e a si próprias para serem antes mortas do que
escravas−, o rei suevo Hermerico −o primeiro conde de Portucale, nascido, por
acaso, na Crunha− ou o mariscal Pero Pardo de Cela, que resistiu o assédio dos
reis Católicos e só foi apresado pela traição dos seus criados−, como outras
figuras mais modernas: Rosalia de Castro, Castelao, o Johán Vicente Viqueira
das Irmandades da fala, o guerrilheiro Foucelhas ou o sensível artista Man.
Também pululam por Galeguia personagens
doutras latitudes: o Zumbi dos Palmares −o último líder dum quilombo do Brasil
colonial− o Tiradentes −executado por ter participado na conspiração de Minas
Gerais contra o domínio português− ou Amílcar Cabral, libertador de Guiné-Bissau
e Cabo Verde. Todas elas circulam pelo poemário junto a outras vozes plurais e
coletivas: a da outra Galiza, interior e abandonada, a dos pobres mareantes, a
da Mátria.
Galeguia é um texto com vocação épica e política e, nesse sentido,
antipoético. Não pretendo com isto dizer que esteja falto de beleza.
Simplesmente, o autor não pretende apressar a palavra e reduzi-la à mínima
expressão, como é habitual na poesia contemporânea. Ao contrário, Manuel
Miragaia transita um universo fortemente narrativo, onde a rima é um recurso de
bardo, a repetir um som monocorde, incessante, com ressonâncias solenes. O
objetivo, a meu ver, é difundir um manifesto político: informar dessas figuras,
relatar a história dum agravo e infundir coragem a quem ler. Os poemas “Sermos
bisagra” e “Carta galega ao Estado espanhol” são indicativos deste afã e, para
quem lê na Galiza, é impossível não lembrar o Ramom Cabanilhas de “Em pé”.
Voltemos ao começo. A palavra Galeguia vinha a manter vivo um debate, o das
línguas usadas como arma política. Uma fronteira política convencional colocou
a Galiza dentro do estado espanhol e fora do estado português, mesmo se falamos
a mesma língua. Com o tempo, esse processo determinou que na Galiza se tornasse
oficial uma variante com traços de crioulização entre o português e o espanhol
e escrita tendo este como modelo, numa decisão que visava conseguir a sua
aceitação como língua escrita e a sua introdução nas escolas, no melhor dos
casos, ou para evitar qualquer movimento separatista, na versão política que
muitos de nós preferimos e que a atualidade do caso catalão obriga a revisar: a
unidade da Espanha não pode ser questionada, a menos que se pretenda ser
acusado de sedição.
Mas também essa irrealidade convencional
do estado é a que determina que territórios afastados da metrópole e dominados
por ela (Brasil, Angola, Moçambique, Cavo Verde, Timor) se vissem obrigados a
abandonar as suas magníficas línguas, muitas delas em franca agonia. A ideia de
as línguas serem uma pertença em exclusivo dos seus falantes responde a uma
ótica nacionalista no sentido em que usa este termo na Europa: uma ótica
chauvinista e folk. As línguas são, como a arte ou o conhecimento científico,
patrimônio cultural de todos os seres humanos, e a sua perda faz com que a
humanidade seja a cada ano mais pobre, mais homogénea. A ferida volta a sair à
luz. Quem negar as palavras não poderá ressarcir depois com elas. A colonização
exercida por Portugal ou por qualquer outro estado é um episódio triste, que
implicou a exploração da classe trabalhadora, o racismo, as humilhações
exercidas manu militari, a expropriação dos
recursos naturais das etnias submetidas, e uma, mais que evidente, destruição
da natureza −dos rios, das florestas, dos mares, das substâncias naturais
sanadoras que se encontram na selva−. Mas também a colonização exercida pelo
estado espanhol na Galiza inclui esses episódios, exceto talvez o de raça
porque somos pálidos como os suevos, mas lembremos com quanto rigor e seriedade
científica queriam os sábios gramáticos manter nos dicionários do espanhol a
aceção de ‘parvo’ para o termo galego.
Como quase todos os problemas políticos
a questão é ordenar as prioridades. O livro de Manuel Miragaia obrigou-me a
matutar muito seriamente sobre se era uma prioridade a questão da etiqueta.
Acho que não. Não tenho problema com lusofonia porque priorizo é que nos
agasalhem com a sua cumplicidade e com o seu respeito os irmãos que moram lá
fora e que falam outras variedades da nossa mesma língua. Lusofonia, para mim é
um termo perfeitamente válido e discordo com Pepetela: o facto de apenas
estarmos unidos pela língua não é questão menor; eis a nossa força. Mas olho
com curiosidade a tentativa de reapropriação praticada pelos partidários de
Galeguia; a reapropriação sempre é punk, sempre é feroz, estimulante. Cá, na
Galiza, para convencer o pessoal falto de autoestima, muitas vezes evitamos o
termo português e usamos o de galego internacional, que ainda muitos utentes de
normativas reintegracionistas detestam com o curioso argumento de o galego não
precisar internacionalidade para ser. Obviamente. O euskera é uma língua e não
precisa de apoio exterior. O catalão é uma língua e não precisa ser falado além
das suas fronteiras. Porém, termos a hipótese de difundir os nossos produtos
sem passar por intermediários, de enriquecer-nos com as nuances do galego bantu
de Aline Frazão ou do galego amazônico, ou do galego do Algarve, é uma
oportunidade que não estamos em condições de esbanjar. Para a supervivência do
galego em concreto, importa é ser internacional.
Hoje, quando a AGLP já entrou na CPLP, bem que nessa condição inquietante
de observadora, o debate pode ser interessante. Para não ver a língua como
instrumento duma história passada de opressão, mas como uma ponte para
partilharmos literatura e música, comércio, ideias, espaços de encontro,
conceitos académicos. Sem que ninguém tenha que deixar de ser quem é.
Manuel Miragaia trabalha lá, introduzindo neste Galeguia, que é um texto
pedagógico, um apêndice com informação das figuras que uns estados que vivem de
costas viradas não difundiram, e com as palavras da variante galega que não são
usadas em Lisboa e que ele está a reivindicar. No seu texto, para além do
projeto inicial, aparecem outros muitos temas: a conquista da soberania política,
ecos antipatriarcais e um profundo amor pela paisagem que produz um poemário
suscetível duma leitura ecocrítica.
Parafraseando Aline Frazão, vai ser que, afinal, não falamos a língua do
colono, que no nosso caso é o espanhol: falamos português da Galiza, com o
sabor indígena do Atlântico-Norte das nossas rias.
[1] .- http://www.jornalirismo.com.br/literatura/17/1406-pepetela-pelo-amor-reciproco-entre-africa-e-brasil
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